O “cantar do Mirandês”: a música para a preservação da língua
- Contemporâneo Jornal
- 13 de jan. de 2024
- 9 min de leitura
Atualizado: 23 de out. de 2024
Para além de uma língua, o mirandês traduz-se em cultura e tradição. Desde séculos atrás, cantam-se as “cantigas” e lenga-lengas em mirandês. Hoje, pelas vilas de Miranda do Douro, ainda se ouvem alguns cantares. A música, cantada em mirandês, tem um papel fundamental na preservação da língua e da identidade cultural única do povo transmontano.
Da vida rural, às tradições, passando pela paisagem e natureza característica da região, as canções em mirandês abordam diversos temas mediante letras poéticas e profundas, que captam a essência da vida no ponto mais oriental de Portugal.
A região de Miranda do Douro tem uma longa história de interações entre a cultura portuguesa e espanhola, devido à localização geográfica, na fronteira entre os dois países. Essa interação cultural reflete-se na música, que incorpora características de ambos os lados da fronteira, o resultado é uma sonoridade única.
Esses cantares transmitem história e são vestígio da herança cultural que se transmite de geração em geração. Grupos musicais da região, artistas independentes e festivais contribuem para a vitalidade da língua mirandesa.
Ao longo dos anos, a tradicional música mirandesa tem evoluído, mantendo-se fiel às raízes culturais e históricas, mantendo-se como um meio de conexão entre o passado e o presente.
Do Rock ao Folk, a música original em Mirandês
Do tradicional ao original, mudam-se os tempos, muda-se a musicalidade. O passar dos anos trouxe à música mirandesa novos estilos e novos sons. Fruto do desejo de preservar a língua-mãe, em 2006 surge o primeiro e único grupo de originais “folk” em mirandês, os TRASGA.
Célio Pires, Amadeu Soares, Xavier Rodrigues, Sérgio Martins e Ricardo Santos são os atuais membros do grupo, gaiteiros de Constantim. Em 2006, os TRASGA começaram porque viram surgir a necessidade de “criar um grupo de palco”.
Célio Pires, um dos membros do grupo, é GNR e também construtor de instrumentos musicais, explica os 3 pilares de fundação do grupo: “Este grupo aparece com três linhas mestras, digamos assim. Era a língua mirandesa ser a única língua a ser utilizada, os instrumentos serem fabricados na minha oficina e a terceira tinha a ver com fazer músicas originais.”
Quanto ao processo criativo, o músico revela a importância da influência dos "Colóquios", um teatro popular mirandês que se fazia no período de invernos que refletiam a vida social. Os "Colóquios" não eram apenas peças teatrais, eram considerados uma crítica social à própria sociedade e à própria envolvência social das aldeias.
“Inspiro-me na sociedade que me rodeia e há coisas que nunca passam. Há coisas que foram no passado, são no presente e no futuro, sempre presentes. Isso tem sempre presença e, portanto, é um dos caminhos que seguimos muito“, fundamenta Célio.
Desta forma, são os temas de autoria própria, a língua mirandesa e as músicas ritmadas, muito vivas e alegres que distingue o grupo, bem como os instrumentos que usam, fabricados pelo próprio Célio, na sua oficina em Constantim.
Além disso, é a fusão entre o passado e o presente que faz com que a música dos TRASGA seja bem recebida onde quer que vão, diz Célio. No entanto, lamenta a falta de reconhecimento nos media: “O nosso tipo de música, como outros, são fortemente prejudicados, porque raramente passam na comunicação social. Nós temos que aparecer nos palcos, tem que haver rádios a passar a música para as pessoas estarem ao vivo. Se não conhecem, não podem avaliar.”
Apesar das dificuldades, os TRASGA continuam a perpetuar a herança única da música em mirandês. Na região, vão além da música, vistos como guardiões culturais que transformaram os “colóquios” em notas musicais.
Instrumentos que cantam em Mirandês
Célio Pires é também construtor de instrumentos musicais. São já 31 anos de dedicação a criar peças que preservam a tradição musical da região. “Comecei aos 16 anos, por necessidade, já que os instrumentos tradicionais eram de pouca qualidade, e não me satisfaziam". Com esta idade, decidiu começar a fabricar e nunca mais parou: "Sem ninguém te ensinar nada, não podes fazer as coisas bem à primeira, tens que ir devagar, progredindo, até depois conseguires chegar a patamares melhores. Sem uma orientação formal e a partir da tentativa-erro". Desta forma, Célio foi absorvendo conhecimentos através da leitura e foi desenvolvendo técnicas mais refinadas.
O foco de fabricante está nos instrumentos tradicionais com raízes profundas à região de Miranda do Douro. Dedica-se a instrumentos como gaitas de fole, flautas tamborileiro e sanfonas organistas, na maioria, aerofones e instrumentos alimentados a ar ou cordofones. Além disso, sabe tocar todos os instrumentos que constrói e diz que aprendeu a tocar sozinho.
“A mim não me faz qualquer tipo de confusão querer, por exemplo, construir cavaquinhos, violinos ou guitarras portuguesas, apenas não tenho qualquer interesse nisso. O meu interesse é em instrumentos antigos e com ligação aqui à nossa terra, ou seja, que tenham tido presença, historicamente, na nossa terra”, justica Célio.
A madeira é a base em todas as peças. A escolha específica do tipo de madeira varia para cada instrumento. O tempo de construção pode variar entre dois dias e dois meses, dependendo da complexidade. A qualidade dos instrumentos depende de muitos fatores, mas o principal é o artesão: “Uma coisa é fazer instrumentos para pendurar na parede e outra coisa é fazer instrumentos para músicos, se houver uma falha de 1 centímetro, faz diferença. São mundos totalmente diferentes.”
Atualmente, Célio está a construir uma gaita de foles com um destino especial: “Eu tenho uma filha que tem nove anos e estou agora a construir a primeira gaita de fole, é uma gaita em dó, galega, por ser mais pequena para ela conseguir tocar mais facilmente”
Todos os instrumentos do artesão são feitos de forma única. Célio não tem instrumentos em stock, apenas constrói por encomenda e os preços podem variar entre os 400 euros para flautas tamborileiras, até aos 3000 euros para sanfonas.
Alguns dos instrumentos que saíram da pequena oficina em Constantim já chegaram ao outro lado do mundo.“Já construí gaitas de fole, para os Estados Unidos, já construí para a Polónia, Espanha, França. Muitos", afirma o músico, acrescentando que não tem nenhuma página na internet onde divulga o seu trabalho, porque considera que se divulgasse ainda mais a sua arte, não teria hipóteses para responder às encomendas.
Assim, só de boca em boca é que o talento do artesão vai-se espalhando pelo mundo, mas é em Constantim que Célio se dedica à preservação da rica tradição musical de Miranda do Douro, fabricando os instrumentos dos músicos da região.
“Eu quero continuar a fazer instrumentos por muito tempo. Os instrumentos neste momento são parte fundamental para a minha vida. Porquê? Porque é uma contribuição bastante considerável que eu estou a dar aos músicos. Se não construísse este tipo de instrumentos, não sei onde é que eles iam conseguir ter instrumentos relacionados com a terra de Miranda.”
Os problemas da região ao som do Rock
Ao lado dos TRASGA, os Pica & Trilha também emergem como pioneiros na criação de música original em Mirandês. Com um estilo eclético que abraça o rock, os Pica & Trilha, uma banda constituída por Emilio Martins, Fernando Rodrigues, Vitor Teixeira, Abilio Fernandes e Jorge Fernandes, estão a redefinir a narrativa musical mirandesa.
Todos eles estão ligados à terra. Além das suas profissões, são homens do campo e não escondem as suas raízes, aproveitando isso para fazer música. Emilio Pica, professor de Mirandês, fala sobre o que levou à criação da banda: “Nós tínhamos todos os ingredientes. Tínhamos uma língua e tínhamos músicos”.
Numa sexta-feira à noite, numa sala de ensaios de uma antiga escola primária, na vila de Sendim, os Pica & Trilha partilham o seu processo criativo. A construção de uma música começa com as letras: cada um leva a sua versão para casa, depois o guitarrista tenta esboçar uma melodia, o baixista contribui com a sua parte, o baterista experimenta ritmos e o teclista insere os toques de teclado. A seguir, reúnem-se na sala de ensaio para harmonizar e ajustar a letra conforme a métrica e a musicalidade desejada. O objetivo é criar músicas que respirem e ganhem vida, especialmente em apresentações ao vivo.
“Nós costumamos dizer que as nossas músicas são à “Frankenstein”, porque cada uma traz um pedaço de casa. Apresenta-se uma letra, depois a ajustamos, levamos a letra para casa e depois juntamo-nos aqui (na sala de ensaio)”, diz Emílio Martins.
Tendo a língua Mirandesa como fio condutor, os membros da banda procuram criar sonoridades em volta das suas raízes, ao som do rock. A presença em palco, os adereços e a forma de contar histórias são outras características que distinguem a banda.
“A palavra é identidade. Ou seja, nós, como banda rural, transportamos uma identidade. Como o nosso meio aqui é mais pequeno, nós sentimos aquele “bairrismo”, aquela coisa que eu não estou a saber explicar. É o orgulho, aliás, nós temos uma música que fala em Sendim, a nossa terra”, acrescenta.
Tal como em “Regagho ( La Tue Bida Ye Ua Salada)”, um “hino” à vila que os viu crescer, esse “bairrismo” e orgulho presente nas letras da banda refletem também alguns problemas da região. A desertificação, os problemas de abandono de trás-os-montes e dos agricultores “que deviam ter mais expressão em termos de poder central”, são alguns dos temas presentes nas letras da banda e que a banda junta "uma parte surrealista das letras que são digamos pequenas histórias de ficção”.
O primeiro passo é uma história, depois tudo se transforma numa música:“Se virmos uma cena caricata, provavelmente, fazemos uma música. Temos a música “Floriano Ambude na Mano”, era uma espécie de “Voz dos agricultores”. Floriano foi parar a Caxias e mesmo preso dizia 'Labradores Al Poder'", e desta história, surge o nome do álbum, como explica a banda.
Questionados sobre a aceitação local, o grupo musical depara-se com uma realidade complexa. Apesar do orgulho que sentem da identidade rural que carregam, a diminuição do interesse pelo rock e o predomínio da música “pimba” leva a que seja difícil que sejam contratados para eventos locais. “Os santos da Terra não fazem milagres. Aqui as pessoas da terra, algumas gostam, outras não gostam. Infelizmente, o rock está a perder adeptos”, diz Vítor Teixeira, Baterista.
A banda ressalta a importância de divulgar e preservar a língua mirandesa. No entanto, enfrentam a dificuldade de não serem reconhecidos localmente e pedem um apoio mais significativo da própria comunidade.
Com dois anos de existência e um álbum lançado, “Lhabradores al Poder”, a banda pretende alcançar novos horizontes e expandir a presença além da sua terra: “Queremos fazer mais um vídeo, mais músicas novas, e, principalmente, gostamos de concertos além-fronteiras, porque aqui já conhecem o nosso grupo, o nosso conceito. Agora gostávamos de ir fora.”, refere Emílio Martins.
Embora enfrentem desafios, os membros da Pica & Trilha mantêm-se unidos por uma paixão comum - preservar a cultura mirandesa através do poder transformador da música.
A renovação do tradicional
Paulo Meirinhos, Paulo Preto, Alexandre Meirinhos e João Pratas, todos professores, são membros dos Galandum Galundaina, outro grupo musical de Miranda do Douro.
“Galandum” vem do nome de uma música tradicional que fala de um galante que prefere o poder local ao central. “Galundaina” vem do mesmo galante, mas “numa versão mais de copos e mais divertimento”, esclarece a banda.
Começaram a tocar em festas universitárias, junto à Ribeira, no ano de 1996. Os Galandum Galundaina, inicialmente constituído por 3 membros, “todos nascidos e criados” na terra de Miranda, nasceu da forte influência musical da família do professor de música e membro da banda, Paulo Meirinhos.
“A minha mãe cantava-me muitas músicas mirandesas para dormir, a minha avó também. O meu avô tocava caixa com os pauliteiros de duas igrejas. Então de casa tínhamos esse ambiente musical.”
As suas raízes, uma caixa, um bombo e uma gaita de foles foram o necessário para se juntarem, somado as histórias e tradições que também foram muito importantes.
Desde o início, a banda apostou na sua origem, o mirandês, nas músicas e nas apresentações, mantendo viva a tradição linguística.
“Aquelas histórias que ouvíamos em Mirandês, contávamos nos concertos, como ainda fazemos hoje, para enquadrar o ambiente, a música e o ambiente social, contar uma história ou outra.”, explica Paulo Meirinhos. Histórias do passado, agora são contadas pelos Galandum como forma de preservar esse legado.
O músico, para além de professor, faz animação em lares de idosos e diz que é lá que muitas vezes descobre algumas dessas “cantigas”: “Faço animação nos lares de idosos, e ouço muito dessas histórias e vivência musical, além disso ensinam-me muitas músicas, então achamos que era interessante recuperar essa ideia”.
A banda quer descobrir as músicas tradicionais, para depois renová-las e influenciar gerações mais novas para a música Mirandesa. Galandum afirma que renova a música tradicional: “não é tocá-la e cantá-la exatamente como cantavam e tocavam os velhos”.
Um estilo muito próprio, resultado de sons e afinações únicas por instrumentos, sendo os próprios membros da banda a construir e transformar: “Nós somos 'luthiers'. Eu faço os meus violinos e os pandeiros. O meu irmão faz as caixas que são cópias da caixa do meu avô. O Paulo Preto faz os tamboris e o João Pratas o tambor de cordas que utilizamos.”
Sonoridades ancestrais com um toque de modernidade é desta forma que há 25 anos que os Galandum Galandaina continuam a manter acesa a chama da música tradicional mirandes.
“Quando começou o Galandum havia três gaiteiros velhos, já muito velhos, então nós na altura falámos com eles, aconselhávamos-nos com eles, aprendemos com eles e sentimos que hoje há muita gente a seguir o que nós temos feito, há muitos gaiteiros, há muita gente nova a cantar as nossas músicas, que aonde quer que esteja ouve as nossas músicas”, conclui Paulo Meirinhos.

















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