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A história e o homem por trás das máscaras de Miranda do Douro

  • Foto do escritor: Contemporâneo Jornal
    Contemporâneo Jornal
  • 11 de jan. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 23 de out. de 2024

O artesão e especialista na cultura mirandesa, Carlos Ferreira, explica tudo sobre os antigos rituais do solstício de inverno e de verão, na região de Miranda do Douro. As máscaras elaboradas por Carlos são parte importante destas cerimónias.


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Carlos Ferreira, o homem por de trás das máscaras de Miranda do Douro. Foto: Nádia Neto

A antiga região de Trás-os-Montes tem rituais que surgiram no período neolítico. Muitas destas festas continuam vivas. Os rituais da região usam, resumidamente, duas tipologias de mascarados: os de solstício de inverno e os de solstício de verão. Os dois têm o objetivo render tributo ao sol.

 

Carlos Ferreira é uma das pessoas que ainda faz máscaras para estas cerimónias e já fez mais de 600. Geógrafo de profissão, foi professor de língua mirandesa e, na atualidade, é administrador-delegado da Entidade Regional de Turismo do Porto e Norte de Portugal. Dedica-se ao artesanato de máscaras desde os anos 2000, quando o seu amigo, o realizador Leonel Vieira, pediu-lhe que participasse num dos seus projetos.


“Foi engraçado. (Leonel Vieira) queria fazer um documentário sobre a cultura japonesa e a cultura mirandesa, porque havia ali pontos de contacto. Conheci estes rituais ligados às máscaras e foi um choque, porque eram de uma energia e de uma força muito grande. Então depois comecei a aprofundar nisso e havia ali uma problemática: não havia artesãos a fazer máscaras para estes rituais”, recorda.

 

Desta forma, Carlos Ferreira decidiu que seria ele a fazer esta labor. Afinal, o artesanato era uma arte que já estava na sua família. Carlos conta que o seu pai era artesão na área da madeira. “Eu perguntava ao meu pai: Porquê continuas a fazer artesanato? Já nem consegues mexer as mãos. Ele respondia: No dia em que paro, morro. E assim foi. Agora, também é assim para mim.”, assegura o artesão.

 

Carlos tem uma grande paixão pela sua arte. No seu estúdio, não ouve música. Gosta de pensar e refletir enquanto trabalha. Diz ainda que adora participar nas cerimónias do solstício: “É fantástico ver um ritual de máscara. É poder abrir uma janela do tempo. Todos estes rituais estão ligados ao primeiro deus dos homens: o sol. Ainda hoje, do sol, depende toda a energia da Terra. Então, para o homem mais primordial, obviamente que o Deus principal era este. Se ele é o responsável por tudo, é normal que eles o adorassem".

 

Dar tributo ao deus sol

 

No inverno, o sol parece ir embora. Os dias são curtos e frios. Portanto, no solstício de inverno, o momento que o sol está mais longe da terra, o homem acreditava que tinha de fazer rituais para que o seu deus voltasse.

 

“Nós temos aqui o que chamamos os 12 dias mágicos, que na sociedade do campesinato, onde não existe mercado, constituem o elemento para programar o ano inteiro. Estes dias começavam o 13 de dezembro e acabavam no Natal, no dia do solístico, embora de facto, geograficamente, não seja este o dia. Depois há outros 12 dias mágicos, desde Natal até reis.”, explica o geógrafo.

 

Os rituais de máscaras ocorrem durante estes dias. Um dos mais importantes é o ritual do chocalheiro, que se divide em dois dias: o chocalheiro manso, no dia 26 de dezembro, e o chocalheiro bravo, no dia 1 de janeiro. 

 

O chocalheiro é uma pessoa vestida com uma máscara tradicional, com um macacão e com uma cobra enrolada ao corpo. No dia anterior ao ritual, a pessoa que vai usar o traje é escolhida através de um leilão. Carlos Ferreira explica: “Se acreditas muito nas questões do santo, da igreja e tudo isso, fazes uma promessa a um santo. No ritual do chocalheiro, é a mesma coisa, só que prometes a este deus sol que vais usar o traje para que o teu desejo se cumpra. O traje é leiloado antes da festa e é vestido de forma anónima.” A máscara e as roupas podem ser adquiridas por até 1.000 euros.

 

O ritual do chocalheiro, assim como outras cerimónias, sofreu alterações desde a implantação da igreja no território mirandês. Depois da reconquista romã no século IX, quase todas a festas passaram a integrar o dia de um santo. Por exemplo, no 26 de dezembro, dia do chocalheiro bravo, é celebrada a festa da Nossa Senhora das Neves, enquanto no dia 1 de janeiro, dia do chocalheiro manso, é celebrada a festa do menino Jesus.

 

Carlos Ferreira expande no tópico da cristianização das festas: “A igreja não conseguiu vencer estes rituais ‘pagãos’, então os incorporou. Portanto, no povo de Bemposta, há uma lenda que diz que chocalheiro é o diabo, que apareceu quando a Virgem estava grávida, para tentar namorá-la. Deus, ao ver o diabo com aquela ‘pouca-vergonha’, interveio e o castigou com o fato e a máscara do chocalheiro. Condenou-o a pedir esmola e depois doar o dinheiro para fazer a festa da Nossa Senhora das Neves e a festa do menino Jesus.”

 

No entanto, sempre continuou a existir esta separação entre a igreja e os rituais dos povos antigos. “É como os santos. O santo fala com os homens e depois fala com Deus para ter uma espécie de intermediário entre os dois mundos. O chocalheiro também é uma espécie de demiurgo, que não é um deus, mas também não é pessoa. É uma pessoa que faz a comunicação entre os dois lados. Mas note-se que eles não podem interagir com o sagrado. Digamos que são dois sagrados diferentes. O chocalheiro não pode entrar na igreja com a máscara, mesmo quando a própria máscara é guardada na sacristia.”, expande o artesão.

 

Por outro lado, meses depois, no verão, o sol é forte. Os dias são longos e quentes. Os povos antigos da região de Trás-os-Montes interpretavam isto como uma prova de que os seus rituais de inverno tiveram o efeito desejado: o sol tinha voltado.

 

“A magia tinha funcionado. Mas fazia muito calor, as pessoas não podiam dormir para trabalhar. Então outra vez se faz rituais e voltam a ter efeito. No São João, faz-se uma grande bebedeira e as pessoas se juntam. Fazem fogueiras, para reproduzir o sol. A magia funciona, mais uma vez. O sol afasta-se.”, conta Carlos Ferreira, destacando que o ciclo funciona, da mesma forma, todos os anos. No entanto, admite que não há tanta informação dos rituais do solstício de verão, quanto há dos rituais do solstício inverno.

 

A importância da fertilidade

 

“Qual é a coisa mais fundamental para a vida?”, pergunta Carlos Ferreira. “É o que nós chamamos de fertilidade. Uma espécie que não se reproduz, desaparece", conclui.

 

A fertilidade era outras das grandes preocupações dos povos que praticavam os rituais das máscaras. Desde sempre, tanto a fertilidade humana, como a fertilidade da terra, são necessárias para a supervivência humana. “Todo o território sempre deu coisas para nós, precisamos que seja fértil. Um território estéril é abandonado pelos homens. Vão para outro sítio. Onde é que se fica? Fica-se em território que tenham em abundância de recursos.”, resume.

 

Todas as máscaras dos rituais têm elementos que representam a fertilidade. A máscara do chocalheiro, por exemplo, tem vários. Para conseguir encontrá-los, Carlos Ferreira afirma que é apenas questão de adquirir o conhecimento certo.

 



Carlos descreve a máscara do chocalheiro como “uma das mais fantásticas que existem em toda europa.” O formato da máscara conserva sempre algumas características, mas, dependendo do artesão, sofre pequenas variações. “O artesão não só reproduz a máscara do ritual, dá-lhe o seu próprio cunho. Eu nunca faço nenhuma máscara igual. Cada uma que faço é sempre diferente”, reitera.

 

A máscara do chocalheiro pode demorar até 15 dias em ser feita e custa ente 500 e 600 euros. “Este projeto é grande e complicado. Tem várias fases, juntar os troncos a partir dos quais eu faço isto e depois fazer o resto com pequenos instrumentos tradicionais e tudo mais.”, afirma Carlos Ferreira. Cada uma das obras do artesão tem um nome, um número referenciado, um cartão de identidade, uma etiqueta e um preço.

 

 

 

Grande Reportagem

La lhéngua que ye l coraçon dua cultura 

por Lara Castro, Natalia Vásquez e Nádia Neto, em Miranda do Douro
janeiro 2024

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