As aulas de mirandês: uma janela para a preservação de muito mais do que uma língua
- Contemporâneo Jornal
- 14 de jan. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 23 de out. de 2024
Numa aula de mirandês na escola de Sendim, o professor Emílio Martins e os seus alunos mostram que se continuar a evoluir, a língua mirandesa tem mais futuro do que nunca.
"Arde leinha, Arde leinha
Burrica bai por eilha pa hoje i pa
manhana I pa toda la semana"
Gabriel, um dos alunos, canta uma lenga-lenga a pedido do professor. O menino diz que a aprendeu quando foi visitar os avós e a memorizou, porque pensa que é “muito bonita”.
No final do dia, às sextas-feiras, os alunos do sétimo ano entram entusiasmados numa sala. Vão ter aula de mirandês. Mesmo ao fim da tarde, as crianças esquecem-se do cansaço, depois de falar entre si e partilhar algumas piadas e risadas.
Hoje, parecem estar ainda mais animados do que o costume. Ao longo da aula, o professor tenta acalmá-los. “(O mirandês) proporciona visitas de jornalistas, estudiosos, curiosos que falam com os alunos e eles adoram isso”, explica o professor.
O professor de Mirandês chama-se Emílio Martins. Começou a dar aulas em 2007 na escola de Sendim. A escola, afirma o professor, faz o seu melhor para proporcionar as ferramentas necessárias para as aulas de mirandês. “Esta escola arrasta por trás dela uma cultura que distingue este lugar de outras escolas do país”, garante o professor. A maioria dos alunos na sala tem mirandês desde a pré-escolar. Dizem que é uma língua que gostam de aprender, que acham que é importante. No entanto, admitem que falam mais português do que mirandês em casa. Gabriel diz que, às vezes, fala com os avós, mas não muito seguido.
Gabriel tem 12 anos e quer ser dentista. Gosta muito de lengalengas e é um dos alunos que mostra mais entusiasmo sobre a língua mirandesa: “É importante quando vamos para outros sítios com mais população. Alguém pode perguntar: Cumo ye la tua bida?. E nós respondemos: La nuossa bida stá bien, bai andando. É uma forma de ser diferente, aprender línguas novas é fundamental para a aprendizagem.”
Vitória é outra das meninas na sala. Quer ser médica. Conta com um sorriso na cara que, uma vez, fez um artigo para o jornal da escola sobre uma tradição da sua terra, sobre a festa da trindade. Também conta que gosta muito da língua mirandesa: “Para mim, é fácil aprender mirandês porque desde pequena ouvia aos meus avós falar com os meus pais. Às vezes, os mais idosos falam mais em mirandês do que em português e para mim é mais fácil.”
O professor, depois de dizer que Vitória é uma das alunas que melhor lê em mirandês, pede-lhe que leia em voz alta uma parte de um livro. Os meninos entusiasmam-se quando ela acaba de ler. “Mui bonito, mui bonito”, repetem em coro.
As palavras favoritas dos alunos são cochino (porco), alpargatas (sapatilhas) e antruido (carnaval). Uma das formas em que eles aprendem vocabulário é através de fichas didáticas, como o caldo de letras que será feito na aula de hoje.
“Nós tenemos eiqui un caldo de letras, ua sopa de letras an pertués. Sopa an mirandés ye caldo. Diç eiqui este caldo de letras, you bou çtribuir para cada un i depuis bamos fazer la correçon", orienta o professor. “Las arbores son mui amportantes pa la nuossa bida. Uas son salbaiges, outras dan fruitos i outras nun dan nada, mas son guapas.”
Os alunos têm de encontrar o nome de algumas árvores no sopa. Não demoram muito a fazer a ficha. A correção é feita com um vídeo pré-gravado pelo professor, sempre a falar em mirandês. Emílio explica: “Normalmente corrigimos no quadro, mas por acaso, desta vez, tinha aqui o computador com um vídeo”.
A aula acaba pouco depois. Os estudantes saem da sala felizes. O som das risadas parece permanecer naquele espaço. “Nós estamos 45 minutos com eles, mas não dá para fazer grande coisa”, confessa Emílio, com o olhar ainda na porta da sala.
Quase 90% dos alunos na escola estão inscritos nas aulas. Todos dizem que estão por escolha própria. No entanto, Emílio Martins admite que os pais têm um role importante nas aulas de mirandês.
“Os miúdos vão à casa dos avós e contam as histórias que aprendem na aula. Os pais encontram-me na rua e dizem que adoram quando os miúdos perguntam sobre o mirandês aos avós ou aos pais. E depois eles chegam à aula e também perguntam sobre palavras que ouviram lá em casa. Às vezes, o mais importante não é falar mirandês como papagaios, o mais importante é ter a noção de que temos uma cultura diferente, a nossa cultura de origem.”
Desde 1999, logo depois da língua mirandesa ser oficializada, o mirandês passou a ser uma disciplina opcional. A diferença de outras disciplinas, como português ou matemática, o Mirandês não tem exames, não tem manuais e os professores são poucos. "Não temos professores de Mirandês. Se um de nós fica doente, não há aulas. Em matemática, há pessoas a substituir. No Mirandês, não há isso”, admite Emílio.
A oficialização da língua foi um grande impulso para tentar manter o mirandês vivo nos mais novos. No entanto, mais de 20 anos depois, os professores desta língua estão numa situação precária. Emílio conta que o professor Duarte Martins, da escola de Miranda do Douro, chegou a lecionar desde o ensino pré-escolar até ao 12º ano.
A falta de manuais é outro problema grave. “É uma ginástica, inventar e reinventar a cada ano. Temos reunido (com o professor Duarte e a associação da língua mirandesa) à noite para construir o manual e não é fácil. Como não temos manual, faço tudo em casa. Se existisse manual, tinha mais credibilidade. Os alunos não estão aqui como estão no português", diz Emílio, acrescentando ainda que todo este trabalho é feito por “muito pouco” reconhecimento.
Os professores de Mirandês também não têm uma formação específica. Apesar de já estar a dar aulas há mais de uma década, o professor Emílio e o professor Duarte só fizeram uma formação em Coimbra, em dezembro, para aprender ainda mais sobre a língua mirandesa.
Esta precariedade faz com que a continuação da disciplina esteja em causa: “O ensino do Mirandês é a nossa dor de cabeça, uma situação dramática. Daqui a algumas décadas, os professores atuais vão estar reformados. E como vai ser depois? Quem vai dar continuidade? Não há professores de mirandês”, afere Emílio.
O professor explica que a continuação do mirandês também tem outra ameaça. No quotidiano, a língua já não é usada pelas novas gerações. “As línguas são vivas e estão a cair. É uma pena, acredito que quem se dedicasse ao mirandês, teria saída. O primeiro ciclo aprende facilmente o mirandês, mas quando são maiores, no sétimo ano, com os telemóveis e isso, já não estão interessados. Os linguístas dizem que o futuro da língua está com as pessoas de fora que querem aprender.”
O mirandês do futuro
Emílio Martins fica com um brilho orgulhoso no olhar quando fala dos rasgos únicos do mirandês: “A forma em que são ditas as palavras depende da aldeia. A nossa língua com os nossos sotaques ganha outra roupagem, porque atrás da língua que falamos há uma expressividade. E nós temos uma expressividade muito própria e particular.”
O professor Emílio é prova disto. Fala enquanto mexe as mãos, levanta o tom da voz quando diz algo que o apaixona. Afirma que, no futuro, o que se pretende é que as pessoas cheguem a Miranda do Douro e se deparem com uma paisagem linguística própria do planalto: frases, placares, nomes de rua, tudo em mirandês. “O Mirandês, em termos de futuro, cobra cada vez mais importância porque é diferente. O que sabemos é que temos uma raiz diferentes, cultura diferente, isso dá-nos um brilho."
As aulas continuarão, numa tentativa de manter viva a cultura mirandesa. As lições de Mirandês já se espalharam ao Porto e a Coimbra. No entanto, neste processo de adaptação da língua aos novos falantes, algumas características perdem-se. No mirandês há uma frase: "o mirandês ou se mama ou não se aprende". "É uma língua nativa e língua de herança. As pessoas idosas falam entre elas, mas não com os filhos. Esse mirandês (o aprendido fora de casa) vai desvirtuar-se do original, mas acaba por ser mirandês. Há expressões que se perder ou que se transformam. O mirandês tem características muito próprias e as outras pessoas podém aprender, mas aquele que nasceu aqui, em Miranda, as pessoas de fora dificilmente vão conseguir, porque as características nascem connosco", explica o professor.
Sobre a importância do mirandês para ele e para o resto de Miranda, Emílio conta uma história: "Estava um linguísta de mirandês num congresso. Ele começou a falar mirandês e uma pessoa perguntou-lhe: 'Olhe, vocês falam mirandês? Eu sei que o inglês tem utilidade, mas o mirandês para que serve?'".
O linguísta responde: "Não, não tem utilidade. Mas para que serve a música? Para que ser a poesia? Nada disso mata a fome, mas já imaginou o mundo sem música e sem poesia?".
O mirandês é isso para os falantes: um mundo com música e poesia. "Não nos vamos governar com o mirandês, mas faz-nos falta, faz parte de nós", reitera Emílio Martins.

























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