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O mirandês foi reconhecido oficialmente há 25 anos. O êxodo rural é uma ameaça à sua continuidade. Do ensino à música, rituais e tradições, mais do que uma língua, é uma cultura. No futuro, "o mirandês será o que os mirandeses quiserem".

por Lara Castro, Natalia Vásquez e Nádia Neto, em Miranda do Douro
janeiro 2024

“O mirandês será o que
os mirandeses quiserem”

17 de setembro de 1998. É o dia que Júlio Meirinhos ainda lembra perfeitamente, quando se tornou o primeiro deputado a falar mirandês na Assembleia da República. 

 

Na história de Miranda do Douro, é também o dia que ficou na memória de todos os mirandeses: o dia em que foi aprovada a lei (que reconheceu os direitos linguísticos da comunidade mirandesa). "É talvez o dia mais importante da história de Miranda, a par da abertura de fronteira”, é o que diz Júlio Meirinhos. 

 

O mirandês foi reconhecido oficialmente há 25 anos. De manhã cedo, autocarros cheios de mirandeses rumaram à casa da democracia para verem ser aprovada com unanimidade a Lei nº 7/1999.​ 

 

“Aconteceu um vulcão de alegria. Eu que estava lá e que vi as galerias (da AR) cheias de mirandeses. Não acreditava que depois os encontrei na sala dos Passos Perdidos, gente adulta e madura a chorar”, recorda Júlio Meirinhos. “Tocou fundo aos mirandeses que sempre conviveram e viveram com a língua, que rezavam em mirandês, que conheciam expressões e termos em mirandês e que não existiam na língua portuguesa fidalga”, acrescenta. Mas, acima de tudo, o antigo deputado considera que a maior alegria foi "satisfazer aquela cunha grande e antiga daquele sábio, José Leite Vasconcelos, que já em 1882, aclamava uma lei de proteção”. 

Júlio Meirinhos, Alfredo Cameirão e Alcides Meirinhos, lado a lado. Foto: Nádia Neto

É preciso recuar no tempo. Em 1882, José Leite Vasconcelos (1858-1941), linguista, sinalizou, pela primeira vez, que o português não era a única língua falada em Portugal. E até escreveu no livro Estudo de Philologia Mirandesa, publicado em 1980, que explica que “os mirandeses fallam mirandês entre sim empregando o português quando se dirigem a estranhos”. 


Júlio Meirinhos afirma que, antes dele, já “tinham tentado com outros deputados fidalgos daqui encomendar essa tarefa, mas disseram que era institucional”. Quando finalmente chegou à Assembleia, sabia que a sua missão era "irmos à oficialização da língua”. 

Reuniu esforços e pediu ajuda ao colega Jorge Lacão, deputado que teve grande responsabilidade sobre revisões constitucionais, que descobriu uma norma que dizia que “é obrigação do Estado Português a proteção da cultura portuguesa”. Foi nesse momento que Júlio Meirinhos apercebeu-se que a lei não era institucional. 

Rascunho da proposta de lei, escrito no Bloco de notas de Júlio Meirinho. Foto: Nádia Neto

A lei havia de ser publicada a 29 de janeiro de 1999. “Levou como uma criancinha, nove meses a nascer”, brinca o antigo deputado. O trabalho de investigação contou ainda com ajuda na parte técnica e de fundamentação de duas professoras de mirandês, Manuela Barros e Cristina Martins. Além disso, a 5 de julho desse mesmo ano, o então ministro da Educação, Marçal Grilo, assinava o despacho normativo que regulamenta o direito à aprendizagem do mirandês, bem como o apoio logístico, técnico e científico. 

Acima de tudo, a lei mostrou que “os mirandeses eram legalistas”, assegura Júlio Meirinhos. O país inteiro começou a ouvir mirandês e é comum os habitantes do planalto de Miranda do Douro dizerem que há o "antes" e o "depois" da lei.

“O diamante estava lá e trabalhamos nele, eu costumo dizer que eu não fiz nada de especial. A única coisa que fiz foi ir ao interruptor e ligar a luz, mas a luz já existia, já tinha energia”, confessa. Porém, reconhece que “saber e chegar ao interruptor não é para todos”.

 

Para novidade, a língua que falaria o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, seria o mirandês. “A treta que nasceu em Guimarães, (o reino) nasceu aqui, no tratado, assinado aqui ao lado, por D. Afonso Henriques, que falava o leonês. Sendo o mirandês puramente o antigo leonês do século 12”, explica Júlio Meirinhos.

 

O impulsionador foi Amadeu Ferreira, principal divulgador da língua mirandesa, que morreu precocemente em 2015. A continuidade deste trabalho está agora nas mãos da Associação de Língua e Cultura Mirandesa (ALCM) que ajudou a formar, em 2002. 

"Os mirandeses viveram centenas de anos a ouvir dizer que falavam mal, ou que falavam um português mal falado, para ignorantes, para pastores, para pessoas que não sabiam falar ou que falavam um mistura de português e espanhol, com a lei deixaram de poder dizer-nos que falávamos mal e tiveram de passar a dizer que falávamos diferente. E não éramos nós que o dizíamos, era a República Portuguesa, por unanimidade e aclamação”, afirma Alfredo Cameirão, presidente da ALCM. 

Em 2020, vários investigadores da Universidade de Vigo andaram pelas terras do planalto mirandês, para estudar os “usos, costumes e competências linguísticas da população mirandesa”, através de questionários feitos aos habitantes. Em 2023, foi publicado o estudo Presente e Futuro da Língua Mirandesa, coordenado pelo catedrático de Filologia Galega Xosé-Henrique Costas, que escreve: “A este ritmo de perda de falantes, em 2050 ou 2060, o mirandês perde-se como língua viva”

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Contudo, para Júlio Meirinhos, parece ser um estudo para "assustar e abanar os fidalgos de Lisboa”, uma vez que o estudo refere que há apenas 3 mil falantes de mirandês. “Ora, 3 mil falantes, acho que é uma treta. Os meus primos que estão em França não estão contabilizados. Essa gente não está contabilizada”, justifica. 

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Obras traduzidas em Mirandês. Foto: Nádia Neto

A par da lei, foi publicada uma convenção ortográfica e nos cinco anos iniciais, houve mais obras publicadas do que nos últimos 50 anos. Os Lusíadas, em mirandês, A mensagem, O Principezinho, Os Quatro Evangelhos e até Asterix e Obelix, são alguns exemplos.

O mirandês está em perda, está em perda de falantes, a par da perda de população. Há cada vez menos famílias a transmitir mirandês aos filhos em casa. Neste contexto, a escola é cada vez mais importante. A publicação da convenção ortográfica também permitiu aos professores o ensino com as regras básicas, porém, ainda não há manual de mirandês. A disciplina de mirandês continua a ser opcional, uma hora por semana e atirada para os horários menos convenientes. Todos os anos, os professores de Língua e Cultura Mirandesa têm de preparar os seus próprios materiais pedagógicos, sem apoio do ministério da educação. Não há manuais, nem programa. Ainda assim, 78% dos alunos do Agrupamento de Escolas de Miranda do Douro aprendem voluntariamente o mirandês

 

Alcides Meirinhos, tradutor e membro da ALCM, garante que, há 5 meses, a associação esteve numa reunião com o secretário de Estado da Educação, exatamente por causa do mirandês. O secretário de estado admitiu a “possibilidade de cada escola alterar 30% do currículo para poder encaixar a língua mirandesa”. Já a associação fez vários pedidos: a disciplina passar a contar para a nota final e um aumento do número de professores de mirandês. Até à data, a espera continua. 

 

Para a associação, a nível de escola, o ideal seria 7 ou 8 professores de língua mirandesa e dar mais passos em frente para transformar o mirandês numa disciplina curricular. “Hoje, no ensino secundário na região, 80% dos alunos da escola de Mogadouro escolhem o mirandês, não é em relação ao francês, é em relação ao inglês”, justifica Alfredo Cameirão, que é também professor de Espanhol, na aldeia de Mogadouro. O presidente da ALCM vai mais longe e considera que, no ensino profissional, no âmbito do turismo na região, "há muito que o mirandês devia ser lecionado com as outras disciplinas".

 

Alfredo Cameirão destaca que o “futuro do mirandês passa pelos new speakers”, que são pessoas que não tendo o mirandês como língua-mãe, aprendem a falar mirandês e serão os falantes do futuro. Baseado na opinião de Cristina Martins, linguista, estes new spreakers falarão um mirandês diferente de há 100 anos.

“Português é a língua de Camões, costumo dizer que Camões dificilmente perceberia o português que falamos hoje e o mirandês vai seguir o mesmo caminho”, acrescenta. 

Júlio Meirinhos explica até que o mirandês é uma das línguas mais compreendidas do mundo. "O mirandês falado devagar, um português até o percebe. O espanhol devagar também o apanha. Ora num mundo de língua portuguesa e língua espanhola, são 750 milhões. Portanto, até uma língua que tem um entendimento no mundo”. Em conversa, Alfredo Cameirão brinca e atesta: “Para baixo de Miami vamos até à Patagónia sempre a falar mirandês”.

 

De contra tudo, contra todos, no caso do mirandês, a língua dos suevos, dos godos, a língua dos bárbaros, é efetivamente verdade. Alfredo Cameirão, refere-se a esta terra como o “fim do mundo”, citando de cor registos que encontrou de um relatório de um prelado de Évora, que em 1609 visitou a terra de Miranda. “Miranda, cidade antiga deste reino que está situada no último fim dele. Não estava situada no fim, estava situada no último fim, éramos os últimos da fila para trás do sol posto”, talvez explique muita coisa, argumenta Alfredo Cameirão.

Futurar o futuro

No entanto, continua haver falhas de energia da língua mirandesa, a começar pela falta da ratificação da Carta Europeia das Línguas Regionais e Minoritárias, que já foi assinada, a 7 de setembro de 2021, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros.  

 

Ratificar a carta permitirá o reforço e dignificação da presença da língua nas escolas, bem como "deixar de ser quase vista como um aspecto folclórico, mas que seja tratada como outra disciplina qualquer”, esclarece Alfredo Cameirão. Ou até obrigar, por exemplo, o Estado Central a garantir que um mirandês que queira ser ouvido em tribunal em língua mirandesa tenha um tradutor e que constitui um aspeto importante do ponto de vista simbólico. 

 

Basta pensar, hoje, se quiser entregar um documento escrito em mirandês, não vai ser aceite pela administração. Como explica, Alberto Bautista, também linguista, “o mirandês é reconhecido como uma língua, como uma língua que se fala em Portugal. Não vai muito além disso, não é propriamente uma língua oficial”.

 

Importa referir que muitas das medidas enunciadas na Carta Europeia já estão no terreno através de um protocolo da ALCM com a Câmara Municipal de Miranda do Douro. Desta forma, é o próprio Alfredo Cameirão que afirma que o Estado, com a implementação da carta não gastará uma “coroa” e, por isso, “não sabem muito bem que estão à espera”. 

 

Além da ratificação, defendem a criação do instituto da língua mirandesa. A proposta foi submetida pelo deputado do Livre, Rui Tavares, e aprovada na discussão do Orçamento do Estado para 2023, mas não chegou a sair do papel. 

 

Os mirandeses durante centenas de anos, trouxeram a lingua às costas, quase considerado um “milagre”, que hoje em dia, ainda se fale mirandês. Como se diz em mirandês: futurar o futuro. Alfredo Cameirão costuma dizer que “o mirandês será o que os mirandeses quiserem que seja o futuro”.

 

A missão da ALCM continua a ser difundir e divulgar o mirandês. Além de dar cursos, fazer traduções, quinzenalmente, a associação tem um podcast - Terreiro de la Lhéngua 25, em parceria com a Casa Comum da Universidade do Porto, que já está no episódio número 70.

Grande Reportagem

La lhéngua que ye l coraçon dua cultura 

por Lara Castro, Natalia Vásquez e Nádia Neto, em Miranda do Douro
janeiro 2024

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