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[Crítica] “Não Sou Nada”: O clube dos heterónimos de Pessoa

  • Foto do escritor: Nádia Neto e Natália Vásquez
    Nádia Neto e Natália Vásquez
  • 29 de out. de 2023
  • 3 min de leitura

Atualizado: 15 de jan. de 2024

“Não Sou Nada”, ou “The Nothingness Club”, quebra as regras da biografia tradicional e explora os heterónimos criados por Fernando Pessoa, através de um thriller psicológico que acontece dentro da cabeça do poeta. O novo filme de Edgar Pêra já chegou às salas de cinema e conta com Albano Jerónimo, Victoria Guerra e Miguel Borges nos papéis principais.


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“Não Sou Nada” estreou em janeiro, no Festival de Cinema de Roterdão, nos Países Baixos, agora está a ser exibido nas salas de cinema por todo o país. Foto: Nádia Neto

Fernando Pessoa e os seus heterónimos fechados numa redação. O realizador português, Edgar Pêra, agarrou nesta premissa ousada e fez do seu filme um jogo de sensações e emoções à volta de uma das mais famosas figuras portuguesas.


Depois de “Lisbon Revisited”, uma curta-metragem, lançada em 2014, o cineasta volta ao universo de Pessoa, desta vez, em “Não Sou Nada”, apostando na entrada no território dos heterónimos.


Vestidos de maneira idêntica - fato preto, bigode e chapéu -, os heterónimos apenas se distinguem pelos atores e placas com os nomes nos casacos, enquanto trabalham numa redação que está a preparar o nº23 da revista Orpheu


Sem dúvida, é um filme que primeiro estranha-se e depois entranha-se. A verdade é há várias maneiras de pensar em Fernando Pessoa, mas só com a audácia de Edgar Pêra foi possível colocar os heterónimos a escrever, jogar matraquilhos e beber num bar uns com os outros. 


Com surrealismo, originalidade e uma pitada de “neón-noir”, a película transcende as obras convencionais com uma abordagem única que retrata a vida e obra do escritor. Ao mesmo tempo, são explorados os cantos mais profundos da sua mente.


O realizador permite ao espectador mergulhar na sua interpretação da psique de Fernando Pessoa criando dois mundos interligados, ainda que na realidade nenhum destes exista.


O hospício, lugar onde Fernando Pessoa, a personagem principal, interpretada por Miguel Borges, está aparentemente internada ou num retiro do quotidiano, ao longo do filme, está profundamente conectado com uma redação, presente apenas na mente do Poeta: “The Nothingness Club”. No clube metafórico, trabalham os seus heterónimos para a revista do qual é editor.


O filme, quer na trama, quer na sobreposição das cenas no grande ecrã, vincula estes dois mundos de uma forma inseparável. Qualquer coisa que aconteça no hospício afetará inevitavelmente o mundo isolado do “Clube do Nada”. 


Assim, neste universo alternativo, a realidade choca com a ficção e cai em “desgraça” com a aparição de Ophelia (Victoria Guerra) - considerada a única paixão da sua vida -, que alterna entre enfermeira e secretária. O paradoxo do coração e da mente traz acontecimentos supressivos,  misteriosos e assassinatos à redação, evocativos dos clássicos filmes noir. A auto-denominada “cinenigmática” aproxima-se do thriller psicológico e policial, sempre com o piano de fundo, para aumentar a tensão.


As atenções estão voltadas para Álvaro de Campos, que impressiona pela interpretação a cargo de Albano Jerónimo, que disputa a autoridade com Fernando Pessoa, numa postura ora alegre ora desequilibrada. 


É compreensível que as palavras proferidas pelas personagens são quase, exclusivamente, versos do poeta, oferecendo uma experiência imersiva e autenticamente pessoana, mas com o inglês à mistura, outra língua em que o poeta escreveu. Para os amantes de literatura, é fácil identificar o estilo de cada heterónimo. Além disso, o filme funciona, através de um subtil ironia, tanto para quem conhece, como para quem não conhece as obras. 


A banda sonora, apesar de reduzida, é assinada por The Legendary Tigernam, nome artístico de Paulo Furtado, que também participa no filme como ator. 


A escolha da Fábrica do Rio Vizela, em Vila das Aves, como cenário acrescenta uma camada intrigante à produção. O local, inicialmente concebido como um edifício em forma da cabeça de Pessoa, transformou-se no cenário ideal para o Clube do Nada, proporcionando uma atmosfera de escritório, pelo seu interior, e hospício, devido às paredes degradadas do exterior. Além do mais, influenciou até mesmo a reescrita do roteiro.


É o filme mais ambicioso de Edgar Pêra que foge à biografia tradicional. É um filme inovador e que no final adquire uma lógica própria, para isso é preciso nos deixar levar numa efabulação, entre vida e morte, pelo pensamento de Pessoa. Isto porque não há limites para os pensamentos. 


Sem dúvida, é um filme feito para ser sentido, já que parece que nada existe, além das sensações. Para sentir tudo de todas as maneiras, Edgar Pêra inventou um universo, não o reproduziu, a única conclusão: “Bem-vindos ao Clube do Nada!”.



Este trabalho foi originalmente realizado para o JPN-JornalismoPortoNet

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