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João Porfírio: “Nós, jornalistas, estamos sempre nos piores sítios.”

  • Foto do escritor: Contemporâneo Jornal
    Contemporâneo Jornal
  • 6 de jan. de 2024
  • 17 min de leitura

Atualizado: 15 de jan. de 2024

O seu sonho, desde muito novo, era ser fotojornalista. Sonho tornado realidade e que já lhe deu o prémio mais importante do jornalismo português - o Prémio Gazeta da Fotografia. Em entrevista ao Contemporâneo falou das dificuldades de ser fotojornalista em ambiente de guerra.



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Foto: Pedro Lemos

Como começou na área da fotografia e do fotojornalismo?


Tudo começou mais ou menos aos 15 anos. Sempre tive um gosto pela fotografia. A minha mãe ofereceu-me uma máquina fotográfica semiprofissional aos 15 anos, e nessa altura vivia em Portimão e comecei a fotografar os eventos que existiam lá, peças de teatro, espetáculos, etc. Comecei assim. Depois com grande lata, comecei a mandar e-mail a todos os jornais do Algarve a perguntar se alguém queria um fotojornalista de 15 anos, claro que ninguém quis. Aceitou um, que foi o jornal do Algarve, e eu fiquei a trabalhar com eles o secundário inteiro. Portanto, estive desde o décimo até o décimo segundo sempre a fazer reportagens com eles, de fotografia. Com isso, antes de vir para Lisboa, consegui ter um portfólio considerável, com 17- 18 anos, quando vim para Lisboa, já com portfólio e uma série de trabalhos publicados em jornais. Isso deu-me alguma bagagem, sobretudo, jornalisticamente. Quando chegava a um sítio para apresentar o portfólio, já não me encaravam com 18, 19, 20 anos, já perdiam um bocadito mais de tempo a olhar para o portfólio e faziam-me a mesma pergunta que me fazem agora, “Como é possível ser tão novo e já ter isto tudo?” Pronto, foi assim. Foi o jornal ter-me dado essa oportunidade tão novo e as coisas terem corrido bem até eu ir para Lisboa.


Vim estudar jornalismo para Lisboa. No secundário estudei  línguas e humanidade para ir para jornalismo, e aqui em Lisboa percebi que queria mesmo fotojornalismo, juntar a fotografia e o jornalismo, e tirei um curso específico só de fotojornalismo, e depois estagiei na agência Lusa, ao mesmo tempo que estava a estudar. Interrompi o estágio a meio para ir sozinho cobrir a crise de refugiados em 2015 na Macedônia, na Grécia, na Croácia, na Hungria, nesses países todos. Interrompi por 15 dias. E depois, o estágio correu bastante bem, na agência Lusa. Os estagiários não costumam ir sozinhos para os trabalhos, estão acompanhados por outros jornalistas, mas eu tanto insisti e tanto insisti que lá me começaram a deixar ir sozinho e pronto, isso deu frutos, porque fui a trabalhos importantes, fui a trabalhos que me permitiram ter algum destaque na agência lusa. No dia a seguir, todas as fotografias que eu tinha tirado estavam em todos os jornais online e em todos os jornais em papel. Muitas vezes nas televisões também. E pronto, isso correu bastante bem. Tive de sair da agência Lusa e entrei no semanário Sol, que se chama hoje “Nascer do sol". Ali estive 2 anos e meio. Depois fui convidado para o Observador, e estou no observador, vai fazer em junho, 7 anos.  Sou editor há quatro, desde os 24 anos. 


Faz este ano, 10 anos desde que sou jornalista com carteira profissional. Antes dos 18, tinha feito aqueles trabalhos que vos disse no jornal do Algarve, mas isso sem carteira profissional. Só pude tirar a carteira aos 18. 


Dizem que o fotojornalismo é contar histórias através das fotografias. Sente que é isso que faz?


Sim, é exatamente isso. Os meus colegas escrevem sobre o que está a acontecer e eu tenho de mostrar em imagens aquilo que está a acontecer. Como sabemos, não há espaço infinito nos jornais, há um espaço muito limitado para as fotografias, tal como existe para texto, um limite de caracteres, etc. Não podemos por uma reportagem, que dura, sei lá, três dias a ser feita, não podemos por três dias de fotografias no jornal. Portanto, temos que selecionar muito bem, uma ou duas fotografias que vão contar muito bem a história que ali está a ser mostrada. Essa é a grande dificuldade, mas também é o grande desafio de nós pôrmos em imagem exatamente aquilo que está a acontecer. Isto para falar de reportagem, que é uma coisa que demora a ser feita. Uma coisa são hard news, ali já é um bocadinho mais fácil porque nós podemos pôr facilmente numa imagem aquilo que acabou de acontecer, é diferente de uma reportagem. 


Imaginem, uma reportagem durante uma semana com as tropas ucranianas, junto à linha da frente, a combater os russos. É uma coisa muito vaga. Imaginem uma semana inteira, 24h com essas pessoas. Eu apanho desde o acordar, a luta deles com os russos, os disparos, eles a ficarem feridos, a morrerem, os que sobrevivem, a adormecerem, a acordarem, jantarem, almoçarem. Isto, durante uma semana, é muita coisa, muita informação, muitas fotografias. Portanto, isto tem de ser tudo trabalhado jornalisticamente, perceber o que tem relevância ou não. Mas sim, basicamente, o meu trabalho, se tiver de ser resumido numa frase, o meu trabalho é contar histórias, claro. É contar histórias jornalisticamente interessantes para o leitor e para quem as vir.


Muitas vezes vai para os locais sozinho. Como é gerir as várias funções de jornalista? 


Então, isso acontece algumas vezes. Ir sozinho para esses sítios. Eu não consigo dizer que odeio, nem que adoro porque, o que acontece é que, quando vou sozinho para um cenário desses, eu tenho que fotografar, escrever, falar para a rádio e já aconteceu ter que fazer diretos para uma televisão. Isto tudo sozinho. Para além disso, tenho de arranjar histórias, os contactos, marcar entrevistas, sítios… Ou seja, fazer de produtor.


Isto é muito bom, porque eu gosto muito de ter a mão em tudo, e de saber o que está a ser feito. Eu gosto de saber exatamente com quem vou falar, que história é que essa pessoa tem, saber exatamente para que sítio é que vou, falar com quem, a que horas…Depois, isso tem um problema. Muitas vezes, como fazemos tudo, acabamos por fazer nada excepcionalmente bem. E a mim chateia-me quando não faço as coisas bem. Mas claro que tento que haja um equilíbrio entre fazer as coisas minimamente bem, o melhor possível. Essa é a grande desvantagem, porque temos a cabeça em muitos sítios. Estou a gravar um vídeo, mas tenho de me lembrar de tirar fotografias, e tenho que me lembrar que o áudio do vídeo tem que ficar bom para ter o acesso ao áudio para ir à rádio, não posso demorar muito a fazer essa entrevista porque às 6h da tarde tenho um direto, e depois às 8h da noite tenho um direto para a televisão, e depois tenho de acabar esse direito o mais rápido possível para escrever o texto da reportagem que estive a fazer durante a tarde toda porque no dia a seguir, o jornal tem que acordar com o texto pronto.


Pronto, isto é tudo muito confuso. Mas é muito bom. Eu acredito que é muito bom porque nós temos conhecimento sobre tudo, quando vamos com um colega que só escreve, e eu só fotografo ou filmo, ou capto som, acaba por haver situações onde eu me perco. Porque estou distraído com as minhas coisas, estou focado nas minhas coisas e acaba por me escapar muita coisa. Como só sou eu a fazer tudo, eu levo uma injeção de informação brutal. Depois, o desafio é compilar essa informação e por essa informação de forma direitinha, áudio, vídeo, fotografia, texto, etc. 


Depois, obviamente, tem grandes vantagens ir com um colega. Primeiro, não estamos sozinhos. Dividimos tudo, desde condução, a problemas pessoais, a problemas profissionais. O trabalho também é dividido de igual forma e, portanto, não há uma sobrecarga de trabalho gigantesca para cada, para só uma pessoa. Obviamente tem muitas vantagens ir com outra pessoa. 


Acho que são estilos de trabalho diferentes, depende muito das situações. Se eu estiver num cenário de guerra, se calhar, eu prefiro estar com outra pessoa do que estar completamente sozinho. Mas se for para cobrir uma crise de refugiados, uma crise humanitária brutal, se calhar não me incomoda nada estar sozinho. 


Como se prepara para cobrir eventos importantes como crises humanitárias e guerras? Quais são os principais desafios que enfrenta ao documentar essas situações?


Muitas vezes, essa preparação é inexistente. Imaginem agora, são 4h28 da tarde, cai uma ponte aqui em Lisboa, ou no Porto. Eu tenho que ir imediatamente para lá, não há nenhum tipo de preparação que eu possa ter para esse tipo de trabalho, e vai ser um trabalho altamente desgastante profissional e pessoalmente porque eu vou ter de estar horas a cobrir aquele acontecimento e vai ser certamente uma coisa desgastante psicologicamente porque, infelizmente, irão morrer muitas pessoas. 


Por exemplo, o incêndio de Pedrogão. Ninguém estava preparado, nem os bombeiros, nem os políticos estavam preparados para um acontecimento daqueles, muito menos os jornalistas. E de repente, eu chego a Pedrogão e deparo-me com uma quantidade exorbitante e assustadora de pessoas que morreram. Não há nenhuma preparação para isso, é impossível haver.


Eu fui para a Ucrânia ficar 8 dias e fiquei três meses. A guerra começa no dia em que eu chego à Ucrânia.

Este é o tipo de situações de última hora. Por exemplo, eu fui para a Ucrânia sem saber que existia uma guerra lá. Eu fui para a Ucrânia ficar 8 dias e fiquei três meses. A guerra começa no dia em que eu chego à Ucrânia. Portanto, eu saio de Portugal sem haver guerra. Não há nenhuma preparação para isso. O que houve de preparação foi: “Olha, aquilo pode começar uma guerra, leva o colete e o capacete e esperemos que não seja preciso usar, mas leva por descargo de consciência.” E pronto, eu levei roupa para 8 dias, e como vos disse, estive lá três meses. Nem a nível pessoal houve preparação porque não há preparação possível. Agora, há trabalhos que nos permitem preparar, mas são outros tipos de trabalhos. Por exemplo, se eu amanhã for para a Ucrânia, eu faço um tipo de preparação que na altura não fiz, não só uma preparação intelectual, histórica e jornalística de saber o que está a passar e de ler tudo e mais alguma coisa sobre a Ucrânia e sobre o conflito, mas física também. Levo o meu kit de primeiros socorros, levo medicamentos, se calhar uma lanterna que não levei da outra vez, levo um carregador de telemóvel com painel solar, levo um starlink para ter internet mesmo se a internet falhe, por causa dos bombardeamentos. Portanto, levo muitas coisas que consigo preparar e precaver em todas as situações.


Eu estive nas eleições dos Estados Unidos do Brasil. Obviamente quando eu vou, e para o ano vai haver eleições nos Estados Unidos, quando eu vou para estas coisas eu preparo-me. Não é preciso preparar-me fisicamente porque a partida é um país minimamente seguro, depende muito das perspetivas e depende dos sítios do país, mas não é um país em guerra. Portanto, não tenho de levar o material de proteção individual massiva como se tivesse de ir à Ucrânia ou Israel. Mas tenho que me preparar intelectualmente e jornalisticamente. 


Tenho que ler tudo e mais alguma coisa sobre o Brasil, sobre os Estados Unidos, sobre o que cada candidato diz, sobre o que cada candidato defende. Tenho de me preparar nesse tipo de situações.


Resumindo, para coisas programadas e que eu sei que vão acontecer, existe uma preparação jornalística grande, e tem de haver, porque ao ser jornalista eu tenho de saber aonde vou. Quando existem coisas de última hora, não há preparação nenhuma, é impossível ter algum tipo de preparação. A maior preparação que pode haver é a experiência, ir para os sítios e estar psicologicamente preparados que aquele cenário pode ser trágico e muito difícil de digerir, porque nós não deixamos de ser ser humanos.

 

Como foi a experiência? Foi diferente ou parecido à experiência do Iraque?


Então, muito resumidamente, porque isto é uma conversa para ficarmos aqui até amanhã de manhã. A experiência foi ótima. Eu fiquei, a nível pessoal, a amar o país, a amar as pessoas, a amar a comida ucraniana. Tenho uma paixão inacreditável pelo país. Voltava lá todos os meses, se a minha empresa permitisse. Agora, falando da guerra, não é?


Nós, jornalistas, estamos sempre nos piores sítios. Portanto, estamos sempre a ir para os bunkers, a dormir em bunkers, a comer nos bunkers, sempre com o colete e o capacete postos, sempre a olhar por trás do ombro com medo que alguma coisa aconteça ao pé de nós e que nós possamos morrer. 

Pronto, foi uma experiência incrível e vai continuar a ser, porque ainda este ano vou à Ucrânia. Vim da Ucrânia há dois meses. Tive quase quatro meses no ano passado. Portanto, vou à Ucrânia bastantes vezes. E, para além de ser uma experiência muito enriquecedora a nível pessoal e a nível profissional, não deixa de ser muito difícil gerir as emoções entre “Eu tenho medo de morrer”, como é óbvio. “Não quero morrer”, mas tenho que fazer o melhor trabalho possível. E depois lidar com aquela situação de... “eu não estou bem”, “custa-me muito estar aqui”, “quero ir embora”.Portanto, essa questão psicológica é muito difícil. Porque nós estamos longe de casa, estamos num país que está constantemente a ser bombardeado e nós, jornalistas, estamos sempre nos piores sítios. Portanto, estamos sempre a ir para os bunkers, a dormir em bunkers, a comer nos bunkers, sempre com o colete e o capacete postos, sempre a olhar por trás do ombro com medo que alguma coisa aconteça ao pé de nós e que nós possamos morrer. Mas a experiência foi incrível nesse sentido porque cresci muito pessoal e profissionalmente e aprendi muito sobre jornalismo lá. Porque conheci os melhores jornalistas do mundo lá. Todos os canais de televisão internacionais de notícias tinham lá os seus gurus. O Anderson Cooper, a Christiane Amanpour, a Clarissa Ward, os grandes jornalistas de guerra do mundo inteiro estavam lá. No meu hotel, onde eu estava a tomar um pequeno almoço todos os dias, via aqueles senhores, e aprendi muito com eles, e é ótimo profissionalmente estar num cenário em que o mundo todo está de olhos postos no sítio onde tu estás. 


Portanto, tu tens que fazer o melhor trabalho possível com as condições que tens. E isso é ótimo, a nível pessoal e profissional é ótimo. A nível mais pessoal, foi bastante cansativo. Os primeiros dois meses, mês e meio, foi muito doloroso porque houve dias em que nós passamos fome porque não havia comida no sítio onde nós estávamos. Nós tínhamos que escolher entre ou almoçar ou jantar porque não havia comida para toda a gente. 


E aí foi muito complicado porque sem comida tu cansas-te, se tu cansas tens menos paciência, se tens menos paciência és menos tolerante aos problemas, se és menos tolerante aos problemas não és bom jornalista, se não és bom jornalista não estás lá a fazer nada. Portanto, isso foi assim mais complicado, pois obviamente ouvir bombardeamentos muito perto, ouvir tiros muito perto, é uma coisa muito difícil, das primeiras vezes, lidar com isso, porque o medo da morte vem sempre ao de cima, muito rápido, e isso é muito difícil. 


Em relação ao Iraque, foi diferente. Muito simples, porque no Iraque, combate-se esquina a esquina, ou seja, os inimigos uns dos outros estão-se a ver uns aos outros. Eles combatem literalmente rua a rua, não é? Eles estão aos disparos e aos tiros, rua a rua. E isso chama-se a linha da frente. E eu sei que se eu me puser entre um militar e o outro, se eles estão aos tiros um com o outro, eu vou morrer. Se eu me puser atrás de um ao outro, à partida, não irei morrer, assim, muito resumidamente. Na Ucrânia, essa linha da frente, que eu explicava do Iraque, é muito diferente porque, imaginem, a linha da frente é muito larga porque o tipo de armamento que é usado na Ucrânia são mísseis, portanto. Estamos a falar de uma extensão de 30-40 km, em que nesses 30-40 quilómetros tens a Rússia a bombardear a Ucrânia e a Ucrânia a bombardear a Rússia. E estes 30 quilómetros de terreno é a linha da frente, ou seja, 30-40-50 quilómetros é um espaço gigantesco. Portanto, isto para dizer que as bombas podem calhar em qualquer sítio. Se vocês estão nesses sítios, a bomba pode calhar em cima de vocês. É muito mais perigoso e é muito mais imprevisível. 


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Foto faz parte da reportagem “Ucrânia - os primeiros 75 dias de guerra“ de João Porfírio


Existe algum evento ou situação no mundo que ainda não tiveste a oportunidade de cobrir, mas gostarias de fotografar no futuro? Se sim, que evento é esse e por que te atrai? 


Olha, este ano vai ser um ano muito rico. O último ano foi paradíssimo. Não aconteceu nada... uma tragédia para quem é viciado em coisas como eu. Sou mesmo viciado em não estar em Portugal. 


Este ano vai ser muito rico em coisas muito importantes. Em março, são as eleições na Rússia, depois pode ou não haver eleições na Ucrânia, o presidente ainda não decidiu. Depois são as eleições europeias. Portanto, por toda a Europa, há uma coisa muito importante. É também ano de eleições nos Estados Unidos. E isto tudo estou a falar de coisas marcadas, ou seja, voltando um bocadinho atrás, coisas que podem ser programadas. Eu tenho a sorte de já ter feito grande parte das coisas que eu gostava de ter feito. Cobrir umas eleições nos Estados Unidos é inacreditável. A nível pessoal, eu já tinha ido à América três ou quatro vezes, nunca nas eleições. A vida nas eleições  é estar a ver um filme durante um mês e meio ou dois meses que eu lá estive, é estar a ver um filme na primeira pessoa. É inacreditável. Assistir a um comício do Trump é uma experiência que eu não consigo sequer descrever em palavras. E eu abomino tudo aquilo que aquele homem diz, não é? Mas é a personagem. Quer queiramos, quer não, é uma pessoa que mexe muito com o mundo e toda a gente no mundo sabe quem ela é. As eleições do Brasil, por exemplo, uma experiência ótima. Portanto, se eu dissesse, já fiz tudo, reformava-me amanhã. Mas, tenho a sorte de trabalhar num sítio que aposta muito em mim, gosta do meu trabalho e que me manda para esse tipo de cenários. Portanto, respondendo à tua pergunta, eu vou continuar a querer fazer este tipo coisas, a estar nos sítios para onde toda a gente está a olhar, não para dizer que estou lá, porque isso não é importante para o leitor, mas para eu fazer parte da história e mostrar a minha visão da história, daquilo que está a acontecer. Eu mostrei a minha visão das eleições dos Estados Unidos, mostrei a minha visão nas do Brasil, nas eleições espanholas, na guerra da Ucrânia, numa série de outras coisas. 


Há milhões de outras coisas que eu gostava de fazer, mas eu sou um jornalista de última hora, vibro com hard news. O meu sonho de trabalho é um dia estar, se possível, no Observador, poder estar a uma hora num aeroporto internacional qualquer, no mundo inteiro, e sempre que acontecer alguma coisa importante é ir para lá.


Tem acontecido isso, felizmente tem acontecido isso. Quase tudo. Quase tudo que tem acontecido eu tenho ido. Portanto, é só continuar. Mas há coisas que não dependem de mim, não é. A coisa de ir para a Ucrânia, depende zero de mim. Depende muito da empresa para a qual eu trabalho, porque nós sabemos que a comunicação social não é um meio riquíssimo e que muitas vezes os jornais, as televisões e as rádios dependem a 100% do dinheiro. Não há dinheiro, não se pode ir aos sítios.


Qual é a história ou reportagem que mais tem orgulho em ter documentado com as suas fotografias até agora?


Assim, orgulho tenho de quase todas as que fiz. Mas assim, aquela mais impactante terá sido uma na Ucrânia que se chama Andriivka, uma aldeia em ocupação russa durante 30 dias. Foi um trabalho, modéstia à parte, meu e do meu colega, incrível a nível profissional e a nível pessoal. Nós passámos lá cinco dias, assim que os russos abandonaram aquela aldeia. Nós fomos logo para lá e tivemos cinco dias só a fazer esse trabalho. Lá está, uma reportagem que durou uma semana. E aí nós falámos com quase todas as pessoas da aldeia que nos contaram histórias absolutamente horríveis, das netas que foram violadas, dos filhos que foram mortos à frente das mães… Aquelas histórias todas que já todos conhecemos. Quando isso aconteceu, “ontem”. Os russos saíram “ontem” daquele local. Sangue no chão, pessoas mortas no chão. E nós fizemos um trabalho que foi pegarmos no mapa dessa aldeia que fica assim ao longo de uma estrada, e nós falamos com as pessoas que lá estavam, muitas tinham morrido, muitas tinham conseguido fugir, etc. Estavam dentro das casas, portanto o que nós fizemos foi o mapeamento de todas as casas das pessoas com quem falámos, e as pessoas iam clicando nas casas, e depois a história da pessoa aparecia.


E esse trabalho foi muito puxado, profissionalmente e pessoalmente, porque foram histórias horríveis, aquelas que ouvimos durante muitos dias seguidos. E foi um trabalho que foi amplamente reconhecido nacional e internacionalmente. Ganhamos um dos maiores prémios do mundo inteiro de jornalismo com esse trabalho, o prémio Gabo, que é, assim, a seguir ao Pulitzer, um dos maiores prémios de jornalismo do mundo. E pronto, conseguimos levar esse trabalho ao estrangeiro, à América, e foi um trabalho que me orgulhou muito.



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Foto: João Porfírio, Addriivka

Como foi ganhar o prémio Gazeta ?


É assim, eu podia ter aquelas respostas politicamente muito corretas e que eu era muito boa pessoas, mas eu vou parecer na mesma boa pessoa depois da resposta. Os prémios são ótimos, qualquer pessoa no mundo que diga o contrário está a ser hipócrita. É muito bom porque são outras pessoas que valorizam o nosso trabalho. Não são as pessoas que trabalham connosco ou os nossos diretores. São pessoas externas, que não trabalham connosco, que não sabem como é que eu sou a nível pessoal, no trato. É normal que os meus colegas gostem de mim e eu gosto deles. Somos colegas, trabalhamos sempre juntos, portanto, é normal que eu ache que tudo o que eles fazem é sempre bom ou muito bom. Eles, a mesma coisa comigo.  E quando isso acontece, os prémios, há uma valorização do exterior, e isso é ótimo. E depois é bom por outra coisa.  Eu tenho muito orgulho num trabalho que foi agora premiado com o Gazeta. Foi um trabalho da Ucrânia, são fotografias que me dizem muito a nível pessoal. 

Fotografias, que a nível pessoal, mas isto não interessa para ninguém, não interessa para o leitor, não interessa para ninguém, mas a nível pessoal houve muitas que me custaram a tirar. E ver isso reconhecido por pessoas externas é uma grande valorização do meu trabalho. Depois, para mim, a coisa mais importante é...os prémios são bons para as pancadinhas nas costas a dizer “ Ah! O trabalho estava ótimo”, mas mais do que isso, os prémios não servem absolutamente para mais nada, a não ser aquilo que eu acho mais importante que é mostrar outra vez o trabalho às pessoas e que esse trabalho não seja esquecido. Vocês viram que eu ganhei o Gazeta, se calhar, foram ver que fotografias que estavam no Gazeta e quem foram os vencedores e voltaram a ver as fotografias, voltaram a ver os olhos daquelas pessoas que estão sofrer, voltaram a ver as crianças a chorar, voltaram a ver os mortos na morgue…Voltaram-se a lembrar que existe um conflito aqui bem perto de nós.




Portanto, isso para mim é o fundamental nos prémios, que é a “desculpa” para os trabalhos voltarem a ser vistos. Há pouco falei do Gabo, fomos à Colômbia receber o prémio, ninguém na América do Sul neste caso iriam ver o trabalho se não fosse com o prémio, e a América do Sul tem um grande distanciamento sobre a guerra da Ucrânia porque estão super longe…eu não digo que eles se estejam a borrifar, mas não a sentem da mesma forma. Os combustíveis não sobem, os amigos deles não estão a morrer como estão os nossos, eles não sofrem com os refugiados que vêm da Ucrânia porque eles estão muito longe, portanto há uma série de… a distância é muito importante neste tipo de situações. Eles ligam à guerra mas não têm grande noção exatamente do que se passa ali porque os noticiários não falam sempre disso como os nossos falam, portanto levar um trabalho da Ucrânia à América do Sul quando pouco se fala da guerra ou não se fala tanto como na Europa é ótimo porque faz com que aquelas pessoas que viram aquele trabalho conhecessem as pessoas que eu fotografei, as pessoas que eu ouvi, e isso para mim é o fundamental nos prémios. 


Como lida com a ética fotojornalista em situações sensíveis? 


Então, aí tenho duas opções, ou faço a fotografia e depois escolho se eu uso ou não depois, ou não faço de todo a fotografia. Vou dar um exemplo, há um bombardeamento em Kiev e eu vou imediatamente para o sítio onde houve o bombardeamento e eu apanho os sobreviventes desse bombardeamento a saírem do prédio todos ensanguentados.  Eu, provavelmente, faço essas fotografias e publico essas fotografias. Mas, por exemplo, seguramente e não tirei fotografias a mulheres violadas, mortas no chão, crianças com mãos e pés atados, assassinados no chão, numa rua… isso não tiro, não vou sequer tirar essas imagens,  e portanto depende muito de jornalista para jornalista, claro há certamente algum jornalista no mundo que fotografou aquilo ou que fotografaria aquilo. Depende muito, para mim faz todo sentido fotografar pessoas que estão ensanguentadas a fugir de um prédio que está a ruir para mostrar que estavam civis dentro daquele prédio, que aquele prédio foi bombardeado e que estão pessoas feridas.  E se estão ensanguentadas, é guerra.  É guerra, há sangue, portanto, não vamos esconder isso.  Coisa bem diferente é mostrar a fragilidade humana a um nível extremo, que é mulheres completamente desventradas pela vagina, como eu vi.  Mulheres completamente abertas até à garganta, todas desventradas por um militar russo. Não vou tirar fotografias a isso… tenho o meu colega que escreve, que ao meu lado vai descrever isso em palavras e que não vai acrescentar nada em fotografias.


Portanto há aqui um equilíbrio grande.  Também é bom termos o nosso colega ao lado, é um trabalho complementar… Nem tudo o que está no texto tem que estar nas imagens, nem tudo que está nas imagens tem que estar no texto. E pronto, é evidente, há certas coisas que não fotográfo.  Mas há coisas que venha quem vier, é hipócrita da nossa parte não fotografar.  Nós estamos a cobrir uma guerra, na guerra há sangue, na guerra há mortos, na guerra há feridos, na guerra há… isso tudo!  Vemos agora imagens de Gaza. Meu Deus, aquilo... Crianças debaixo de escombros , adultos debaixo de escombros, todos ensanguentados. É a guerra, tem que ser mostrado. Ponto.  Nós só vemos o que se passa em Gaza, porque estão lá os jornalistas a mostrar isso. Imaginem não mostrar nada daquilo.  Ninguém sabia o que se estava lá a passar. 


Grande Reportagem

La lhéngua que ye l coraçon dua cultura 

por Lara Castro, Natalia Vásquez e Nádia Neto, em Miranda do Douro
janeiro 2024

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