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Celestino Sabino: “Discriminaram-me por quê?”

  • Foto do escritor: Lara Castro
    Lara Castro
  • 10 de jan. de 2024
  • 9 min de leitura

Durante quase 30 anos , a Polícia internacional de defesa do estado, a PIDE/DGS encarregou-se de assegurar os valores do estado novo. Atualmente poucas são as histórias que conhecemos daqueles que dela fizeram parte. No Variz, Vila no Concelho de Mogadouro, Celestino Sabino conta-nos na primeira pessoa, a história de um ex-PIDE.




Como foi a sua vida antes de ingressar na PIDE?


Nasci dia 9 de setembro de 1938, no lugar de Zaba, freguesia e concelho de Mogadouro. Dos 12 aos 17, fui ardina.  Dos 17 aos 20, fui ajudante eletricista. Dos 20, aos 24 fui militar, tive um ano no porto, no regimento de engenheiro 2. 


Em Maio fui transferido para Moçambique e depois embarquei para a Índia, em Goa, aterrei no porto de Mormugão, na Índia, aí estive cerca de dois anos, até a Índia portuguesa ser tomada pela União Indiana.  Depois, fomos prisioneiros, tivemos seis meses presos lá no campo de prisioneiros de Albuquerque, em Goa.  Ao fim de seis meses, viemos de avião até Karachi, no Paquistão.  Aí embarcamos no Paquete de Moçambique, com destino a Lisboa. Quando chegamos a Lisboa, fomos dados como fim de tropa, e depois regressamos às nossas origens.  


Depois, empreguei-me na barragem de bemposta.  Mais tarde concorri para a Guarda Nacional Republicana, onde estive a ano e meio.  Estive em Lisboa, no esquadrão motorizado. depois daí concorri para a Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) , onde permaneci até o 25 de Abril. 


Corri Portugal, estive em Lisboa, Beja, Monção e depois fui para Moçambique. Em Moçambique estive em Lourenço Marques, Tete e depois fomos detidos pelo exército para averiguações. Depois fomos postos em liberdade, com a declaração de que, quem quisesse podia procurar emigrar para outra terra, para outra nação e se não emigrassem dentro de pouco tempo seriam transferidos para Lisboa, onde seríamos detidos para averiguações. 


Com essa informação que tínhamos recebido das Forças Armadas, de um capitão amigo, fui para a Rodésia, onde permaneci cerca de dois anos, não garanto bem certo, mas cerca de dois anos.  Depois na Rodésia também começaram a aparecer as revoluções, lá os africanos incitavam-me a...  "Sabino, porquê é não vais pra tua terra? Sabino, vai para a tua terra!". Tantas incitações, que resolvi abandonar a Rodésia e vim para Portugal. Em Portugal... fui legalizar a minha situação no tribunal militar de Lisboa, legalizei a situação, fui chamado para regressar ao trabalho, para regressar ao serviço, com a condição de perguntar se queria ser reformado ou queria entrar novamente ao serviço do Estado português. Como já estava empregado como eletricista na barragem do Pocinho, resolvi me aposentar. 


Fui aposentado e continuei com a vida aqui na aldeia onde tinha nascido, onde tinha a família e por cá continuo. Entrei na Pide com 25 anos. Saí como agente de primeira, entrei como agente auxiliar e ao fim de 20 anos na PIDE, já era agente primeira.  


O que o levou a ingressar na PIDE?  


O vencimento. Já naquela altura tinha um vencimento de 2.400 euros por mês, mais 1.800 de prémios de deslocação. 


Como funcionava o processo de entrar na PIDE?  


Fiz o requerimento com as habilitações. Depois ingressei na PIDE, fiz um curso de seis meses. Ao fim de seis meses, fiquei aprovado no curso e fui colocado como agente auxiliar. Trabalhei como agente auxiliar durante um ano, depois fui colocado no interior do Alentejo, mais propriamente em Beja, depois fui promovido agente de segunda, concorri para a fronteira de Monção do Minho, onde estive quatro anos, e dali fui novamente para Lisboa, onde permaneci também cerca de dois anos. Depois fui colocado em Moçambique.  


Mas considerava-se um polícia bom ou um polícia mau?


Por onde eu permaneci, só angariei amigos. Só angariei amigos. Quando fui para Monção, logo arranjei amigos ao fim de oito dias… era tempo de caça. “Por que é que não vai à caça?”, perguntavam “não tenho arma, nem cão.” Passados meia dúzia de dias já tinha um cão e uma arma à porta. "Está aqui uma arma e um cão".  Ah, depois já ia à caça com eles. 


Era daqueles polícias que “fechava os olhos” quando alguém passava por uma fronteira?


Eu cumpria com o meu dever.  Só que, por exemplo, naquele tempo era difícil obter passaporte, só com uma autorização especial. E então havia pessoas que tinham necessidade de ir ao médico a Espanha, especialmente a Vigo.  Nós tínhamos a autorização de passar um salvo conduto com o pagamento de cem escudos.  Mediante o que pagavam, nós passávamos o saldo conduto que dava para estar na Espanha, 24 horas. Mas havia muitas pessoas que tinham dificuldade em angariar os cem escudos para a guia dizia, "olhe, pode passar, mas tem que pagar cem escudos...", respondiam-me "oh, tenho que ver se alguém me empresta porque não tenho e tal..."e eu disse "mas não há problemas quer dizer... é só para ir ao médico não é?", respondeu-me "é..." e eu disse "então olha eu vou passar um cartão para o meu colega espanhol, para que a deixe passar que só vai ao médico a Vigo, vai e vem no mesmo dia, não precisa de pernoitar e passava-lhe um cartão, em vez de lhe cobrar os cem escudos, passava uma autorização própria, um cartãozinho, e a pessoa ia e vinha, e depois ficava muito agradecida.


E se não cumprisse com os seus deveres, era penalizado? 


Se não cumprisse com os meus deveres, era penalizado.  Era transferido dali e com certeza que pagava, nunca aconteceu, não é? Nunca aconteceu esse castigo, porque tanto eu como os meus colegas tentávamos cumprir sempre com os meus deveres.  E além disso, tinha lá um chefe que tinha logo conhecimento do que se passava e, portanto, o chefe, se houvesse alguma coisa que não estivesse de acordo com as instruções que tínhamos, chamava-nos á atenção, “puxava-nos as orelhas”, como se costuma dizer.  "Você fez isto, fez aquilo, para a próxima vez não pode fazer, se não é transferido de serviço."


Quando saiu da PIDE?


Pois saí no 25 de Abril. Depois estivemos, não sei, três ou quatro meses em Moçambique, ao serviço do exército português.  Eles na altura chamavam, Polícia Militar do Exército, assim uma coisa.  


O que fazia no exército? 


Nada, foi só uma maneira de nos pagar o vencimento.  E recebimos sempre o vencimento até essa altura. Depois veio a ordem do exército português para regressarmos a Portugal para fazer contas com o Tribunal.  Só que eu não compareci. Mandaram uns pedidos, uma prova para que eu me apresentasse no Tribunal Militar. Daqui informaram-me, que me tinha de apresentar no Tribunal Militar, depois quando regressei a Portugal, quando veio essa ordem para me apresentar na tribunal militar, fui lá apresentar-me, fui ouvido e fui condenado em 4 meses.  4 meses de pena de suspensa. Apanhei 4 meses de cadeia, mas já tinha prescrito, então saí em liberdade.  Tratei da reforma, reformei-me e até hoje.  Continuei com o meu trabalho que tinha, eletricista e assim continuei.  Até me reformar aos 60 anos, quando fiz os 60 anos,  trabalhei, descontei para a Segurança Social, além da reforma da Caixa Geral de Aposentações, depois reformei-me pela Segurança Social, até hoje. 



Como é descobriste que o 25 de Abril estava a acontecer? 


Ora bem, nós estávamos em comunicação via rádio com Lisboa. Todos os dias tínhamos lá um posto de rádio que recebia as mensagens, todos os dias comunicava duas ou três vezes por dia com Lisboa. E além disso, tínhamos a emissora nacional. Quer dizer, aquilo foi logo divulgado na emissora nacional.


A gente ligou o rádio, "olha, deu-se o 25 de abril em Portugal. A polícia da PIDE foi presa, a PIDE é presa, à exceção do ultramar, que era Angola e Moçambique e o resto também príncipe. A PIDE, será detida, será presa. Já vistes? Enquanto precisarem de nós, nós continuamos.

Depois veio o Mário Soares e companhia venderam Moçambique, era onde eu estava. Venderam Moçambique à Frelimo, entregando tudo o que lá havia e, em virtude, de já não precisarem da PIDE para trabalhar com eles, “serão detidos e enviados para Lisboa”. 


E como é que foi a sua reação ao 25 de Abril ?


Nós lá não sentimos a reação ao 25 de abril, porque lá era totalmente diferente. A PIDE em Moçambique, estava exclusivamente ao serviço do exército português, a recolher informações sobre os movimentos terroristas, os movimentos de libertação, na altura eram movimentos terroristas, agora é movimentos de libertação, em que faziam terrorismo contra as povoações, contra o exército português. O exército português estava lá para defender o povo africano e os outros eram um bando de terroristas que entravam, matavam, faziam emboscadas, e eram considerados terroristas.

 

A partir do momento em que tu vieste para Portugal no pós 25 de Abril, sentiste algum tipo de diferença de tratamento?


Depois do 25 de abril, quem pertenciam ao Estado antigo, ao Estado Salazarista, esses é que eram martirizados e fuzilados, até havia uma camionagem, que acho que era do Cabanelas, em que, criaram o Copcon, o Copcon foi uma polícia criada por Otelo Saraiva de Carvalho, que era o comandante dessas tropas, das FP-25, esses é que martirizavam e fuzilavam a torto e a direito. 


Depois o Otelo Saraiva de Carvalho foi preso e o FP-25 acabou, e depois aquilo começou …essas pessoas que pertenciam ao PCP antigo amedrontavam as pessoas, qualquer coisa…por exemplo, uma pessoa ia ao banco levantar dinheiro, chegava aí, “Olha, dá cá o dinheiro…dá cá o dinheiro, se não digo que és da PIDE”... coitado…” olha que ele é da PIDE, da PIDE, olha que ele é da PIDE”, apanhavam-no, davam-lhe uma porrada, não era nada, era um inocente qualquer…porque geralmente os da PIDE sabiam-se proteger, não andavam assim, de boca em boca, quer dizer, sabiam-se proteger e defenderem-se, tanto é que os da PIDE estavam presos, tiveram não sei quanto tempo presos, que eu não estava cá, e depois os outros foram todos integrados nos serviços estatais, uns foram para professores, outros para administradores disto e aquilo, quer dizer, mediante as suas instruções literárias, assim eram colocados.


O pó andava no ar, depois o pó assentou, pronto. 


Como foi a chegada a Portugal?


Quando íamos voltar para Portugal, chegamos, trazíamos a roupa era amarela, o caqui  amarelo, tivemos seis meses presos, presos, detidos lá no quartel. Aquilo era, quer dizer, estávamos detidos, mas não era assim. Pronto, dormíamos ali nas casernas, e ao meio dia comíamos, e andámos na limpeza, todos faziam… Era uma tensão, mas não era prisão.


Depois viemos transferidos para Karachi, depois de Karachi apanhamos o barco. No barco tiramos a roupa da África, e deram-nos roupa nova, farda cinzenta da tropa. Quando chegámos a Lisboa, fomos entregar a roupa, aquela farda nova que tínhamos, tiramos aquela roupa nova… “Então e agora? Não tenho dinheiro, não tenho roupa… como é que?” Deram umas calças rotas, uns sapatos rotos, uma camisa esfarrapada, e assim me mandaram para casa. Foi assim a minha história da guerra.


E agora, passados tantos anos, 50 anos depois do 25 de abril sente que, de certa forma, o facto de ter escolhido o lado errado nessa altura, levou a que não tivesse certas regalias? 


Ora, pois, exacto, os prisioneiros de guerra, todos têm um suplemento. Eu pertenço ao quartel de Chaves. Mandaram um processo para aqui, para eu pedir, para receber esse subsídio de prisioneiro de guerra. Foi lá para os chefes militares, que naquele tempo era tudo, anti-PIDES, e porque pertencia à PIDE, não tinha direitos, quando antes de ir para a PIDE, tinha sido tropa, prisioneiro de guerra, tive trinta e seis meses de tropa, seis meses preso, um ano cá em Portugal, dois anos na Índia, e depois tiveram a lata de dizer, “pedido para este subsídio: indeferido”. 


Até hoje, eu nunca mais me chateei, porque, naquela altura, só havia um partido, quem pertencesse ao Partido Comunista tinha tudo o que queria, quem não fosse era corrido, não sei porquê.


Mas sentes que escolheste o lado errado?


Ora bem, ninguém sabe o dia de amanhã. Eu estive na guarda, lá recebia um conto de reis, na PIDE passei a receber dois contos, quer dizer, tive sempre a inspiração de subir, subir, subir, quer dizer, não queria ficar para sempre como varredor do lixo. Ora bem, se eu estava num emprego a receber mil, se tinha outro a receber dois mil, pois vamos para ali, para aquele. Agora, quer dizer, o lado errado eu não sei porquê? Não era lado errado nenhum, porque naquele tempo, não eram só inimigos, porque havia muitos amigos, quer dizer, a maior parte do pessoal era amigo.


Eu quando vinha cá de férias, por vezes abordavam a minha família sobre problemas que tinham metido com a PIDE, por imigração clandestina, como é que haviam de fazer, e eu elucidava-os de que é que deviam fazer. Elucidavam-os, “fazem desta maneira e esta é assim, vão fazer assim, vão fazer assim.” E as pessoas ficavam agradecidas, portanto, não tinha mais.


Quando foi 25 de abril, havia certos negrumes. “Ah, quando vier, quando vier para cá, eu faço, acontece.” Regressei, e tal, era só garganta. Agora perguntei-lhe. “Tens alguma queixa para mim?”, respondia-me “Queixa? Ah, não, é só por ouvir dizer.” 


Mas alguma vez fez coisas com as quais não concordava?


Não, tudo o que fiz foi sempre, foi sempre dentro da legalidade que havia.

 

Mas discordava do regime?

 

Não.




Valoriza a importância do 25 de Abril ou não?


O 25 de Abril, agora. Mas na altura não… na altura, o 25 de Abril foi pior que o salazarismo. Porque tal como te disse eu não podia andar na rua. E não só para os agentes da PIDE, como disse, tu vais ao banco, levantar dinheiro. “ó, dá cá dinheiro. Se não digo que tu queres da PIDE. Agora, quer dizer, mata-se, esfola-se ,que liberdade? No tempo do Salazar não acontecia isso. Não, não acontecia. Quer dizer, é uma liberdade para alguns, para outros não. Por isso é que eu digo que, sim senhor, há coisas boas, mas também há coisas más. Batem nos polícias, matam os polícias. No tempo do Salazar não matavam os polícias. E agora? Agora matam. Por isso é que eu digo, quer dizer, tudo tem o lado bom e o lado ruim, e quem bom é, bom fica. Antes, no tempo da ditadura, já continuava com o meu ritmo. E agora continuo. Portanto, não estranhei nada. Estranhei a discriminação que me fizeram.


Se isto é bom, não haviam de ter discriminado ninguém. Porque me discriminaram. Porque eu fui tropa até aos 22, sofri na pele a prisão, estive seis meses prisioneiro de guerra.Só depois é que ingressei primeiro na GNR, não é? E depois na PIDE. E afinal, como é? Discriminaram-me por quê?

Então, e se fosse hoje, voltava a fazer parte da PIDE?


Ah, pois voltava, voltava. 

Grande Reportagem

La lhéngua que ye l coraçon dua cultura 

por Lara Castro, Natalia Vásquez e Nádia Neto, em Miranda do Douro
janeiro 2024

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