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Ayres Gonçalo: “A alfaiataria industrial não existe, a alfaiataria é feita à mão”

  • Foto do escritor: Nádia Neto
    Nádia Neto
  • 23 de out. de 2023
  • 9 min de leitura

Atualizado: 15 de jan. de 2024

Conhecido por já ter vestido o Rei Carlos III, Ayres Gonçalo explicou ao Contemporâneo as diferenças da alfaiataria. As linhas e as agulhas já faziam parte da sua família, o que o levou a Madrid, Londres, Nova Yorque e Hong Kong para aprender o melhor da alfaiataria internacional. Estabelece a marca Ayres Bespoke Tailor no regresso a Portugal, onde o peso do legado e o amor por esta arte se uniram. Em Entrevista, falou do estado da verdadeira alfaiataria, do cliente moderno e da falta de formação e apoios à moda nacional.




Muitos dizem que a alfaiataria, na atualidade, está um pouco fora de lugar. Será que continua a ter importância num mundo cada vez mais focado no consumismo e no fast-fashion?


A alfaiataria tem lugar neste mundo. O que falta são pessoas que a façam porque há muita falta de mão de obra. A mão de obra é escassa, hoje em dia, porque não houve formação. Os alfaiates, pura e simplesmente, não deram formação e isso fez com que as pessoas não aprendessem, não tivessem seguido esta arte. No estrangeiro, há pequenas escolas de alfaiataria, onde se vão formando jovens alfaiates, mas aqui em Portugal não.


A alfaiataria é quase nula cá em Portugal. 

Como é ser criador de uma área que é designada como próxima da extinção?


É aliciante, porque é assim, eu não a vejo como extinta, nem nesse caminho. Isto porque eu trabalho nela e tenho a minha equipa que também trabalha no mesmo setor e enquanto for vivo, eu irei trabalhar nesta área, por isso, não acho que poderá vir a ser extinta. Mas eu tenho conhecimento, tenho amigos da mesma profissão, que trabalham noutros países e têm produção, têm aprendizes e têm acesso às escolas de alfaiataria e vão buscar alunos para começar a trabalhar nas suas próprias alfaiatarias, por isso, vai haver um seguimento. Agora, na minha humilde opinião, acho que cada vez será mais exclusivo e, obrigatoriamente, mais caro porque depois as matérias-primas são mais caras, mais exclusivas, como há uma escassa mão de obra, os profissionais vão ser mais bem pagos.


Como se apelida: designer, estilista ou alfaiate? 


Alfaiate, essa é a minha formação. (Risos) Um designer de moda desenha e cria. O alfaiate constrói, também pode criar, só que a construção do alfaiate, do verdadeiro alfaiate é uma construção tradicional, artesanal. Não é feito em confecção. Não é feito em massa, são trabalhados todos os interiores da peça e são construídos à mão. E isso permite dar uma durabilidade muito longínqua à peça. O designer não, desenha no autocarro ou numa folha de papel e depois dá aos modelistas para fazerem o molde e depois às costureiras para construir. Mas não tem nada a ver uma coisa com a outra, são duas coisas completamente distintas.


Então a alfaiataria é mesmo um trabalho do zero por completo?


Sim. Em inglês diz-se “from the scratch”, mesmo do início.


Dizem que o amor pelas artes é espicaçado pela família, quem sai aos seus não degenera. Como foi o seu caso?


Foi um amor que nasceu naturalmente. Foi o meu avô que me incutiu o amor pela alfaiataria. Comecei a trabalhar com o meu avô muito cedo, com 15/16 anos e depois queria ver como era a alfaiataria internacional. Aprender mais e aventurar-me, mas sempre com a intuição e com o objetivo de regressar um dia. Foi mesmo aprender fora para aplicar cá dentro. Sempre com o apoio  familiar, mas eu sempre trabalhei. Fiz o meu curso em Madrid, em 2004, e trabalhava durante o dia numa alfaiataria para ganhar dinheiro para pagar as aulas na escola de alfaiataria à noite. 


Este é um negócio que passa de mãos em mãos. Como disse, começou com o seu avô e agora deu continuidade. O que acha do futuro do seu ofício? Está garantido ou tem receio que a geração mais nova não esteja tão apegada?


Nada na vida está garantido. Eu acredito que haja continuidade, que os jovens queiram desenvolver, aprimorar e desenvolver a arte da alfaiataria. Agora, é necessário haver formação, é urgentíssimo. E é preciso também haver disponibilidade para dar formação, que são duas coisas completamente diferentes.


E tem notado uma maior procura por esta formação?


Procura há, agora aprender alfaiataria não é fácil. Não é só necessário a procura, é necessário algum esforço e sacrifício para aprender.


Será por isso que não existem escolas de alfaiataria em Portugal?


Não existem escolas de alfaiataria em Portugal, porque não há gente qualificada para dar formação. Os cursos de alfaiataria que têm aparecido, nomeadamente em escolas de moda, são cursos de alfaiataria industrial.


A alfaiataria industrial é algo que apareceu há bem pouco tempo. Mas a meu ver não tem sentido nenhum, porque a indústria esteve sempre afastada da alfaiataria e  como a alfaiataria ficou na moda, quiseram fazer ali uma junção, mas isso não existe. A alfaiataria industrial não existe, a alfaiataria é feita à mão, tradicionalmente. 

Sabemos que tinha um projeto que consistia no desenvolvimento de uma formação para jovens alfaiates. Como está essa iniciativa?


Tivemos e, na verdade, estivemos a dar uma formação de alfaiataria na Escola de Moda do Porto. Mas, o que eles queriam, na realidade, era alfaiataria industrial. E isso não dá para nós. Porque nós fazemos a alfaiataria verdadeira. E também, a formação ocupava-nos muito tempo quando nós estávamos a terminar casamentos, ou seja, com deadlines. Sempre correu bem. Só que ninguém saiu de lá alfaiate, essa é que é a questão. As pessoas têm de querer, tem que haver a vontade. Isto custa um bocado no início, não é fácil.


Mas tinha pensado em ter mesmo uma escola sua?


Sim, já pensei nisso. Até já pensei várias vezes. Mas não tenho disponibilidade. E, neste momento, estamos com outros projetos. E tenho de me debruçar mais sobre estes projetos, que têm prioridade para o bem-estar da nossa empresa.


E como caracteriza o cliente moderno? É muito diferente do cliente de antigamente?


Boa pergunta. Não tem nada a haver o estilo de hoje em dia com o estilo de há 40/50 anos atrás. Eu aceito, obviamente, porque vivo nesta era e muito sinceramente como podem ver sou apreciador do estilo descontraído. (Risos) O meu avô era uma pessoa que até ao domingo andava de fato e gravata. Para ter um termo de comparação, há 30 anos atrás, as pessoas vestiam um fato para ir andar de avião, porque era um acontecimento.


Quando morava em Londres, no verão, o meu avô, numa das vezes que me foi levar ao aeroporto, lembro-me de ele me dizer que não fazia sentido, porque havia pessoas de havaianas, de calções... E foi ele que me disse que, antigamente, quando as pessoas viajavam de avião era um acontecimento e vestiam um fato. A moda está mais descontraída. As pessoas que normalmente me procuram são pessoas que vão casar, querem uma peça bem feita ou executivos, que ainda andam de fato diariamente. Mas a moda é feita de ciclos, então eu posso ou tenho a esperança de que tudo vá voltar ao que era antigamente. O estilo, não os meios de construção. 


Por exemplo, agora começa a florescer o estilo mais vintage...


Exatamente! Se formos a uma dessas lojas em 2º mão, estão as roupas a cheirar a   mofo, antigas e as pessoas aderem, compram.


Até o uso do colete e do blazer já voltou, não acha? Como diz que isto tudo é um ciclo, acha que a alfaiataria continuará ligada aos ideais de sofisticação, de luxo, com um cunho mais pessoal?


Sem dúvida, acho mesmo isso e ainda bem para mim. Porque, há 40 ou 50 anos atrás, neste edifício, 10 salas poderiam ser de alfaiates. Ou seja, há cada vez menos alfaiates, mas também antigamente não havia tanto pronto a vestir e as pessoas andavam quase todas de fato. Vemos fotografias dos anos 50 da cidade e está tudo de fato. Antigamente, até se viravam os fatos. Ou seja, usávamos o fato assim, não é? E passados uns anos, íamos ao alfaiate e o alfaiate tirava a entretela e virava o tecido do avesso e então tínhamos um fato novo.


Falou de receber executivos e noivos, ou seja, recebe várias pessoas de vários contextos sociais e económicos diferentes. É maior a pressão quando se faz algo para um cliente que é mais conhecido, com maior poder de compra ou com maior influência?


Não, a minha pressão, nesta fase da minha vida, é entregar as peças a tempo, no prazo. Não tenho pressão sobre qualquer tipo de pessoa. Tanto posso receber o presidente da República como o senhor que trabalha no café. É exatamente igual e trato-os do mesmo modo. Óbvio, que gosto e tenho clientes que estudam a alfaiataria, tipos de tecidos, gramagens... Então, esses clientes ensinam-me, são clientes que me informam. São pessoas atentas, tenho clientes assim e gosto.. 


Então aqui é um espaço quase de confessionário?


Então, os clientes estão aqui de cuecas, não é? (Risos) Então têm de estar um pouco à vontade comigo, é um confessionário. Conversamos, falamos de tudo, da vida privada, etc.


A crise que se iniciou este ano já afetou de alguma forma o seu negócio?


Graças a Deus, que nós trabalhamos a lume brando, ou seja, ninguém vem aqui comprar um fato para ser entregue amanhã. Eu noto um atraso na entrega dos tecidos. Praticamente, os tecidos são todos importados.


Primeiro, chegavam em dois ou três dias e agora, em quinze dias. Algumas matérias-primas não estão a ser produzidas, mas também é por causa do tema da guerra. Mas de resto, não afetou nada porque estive a trabalhar no mercado de casamentos, nos casamentos que estavam com dois anos de atraso, devido ao Covid. Por isso, nós tivemos uma summer season até bastante atribulada e, pronto, agora estamos mais calmos e estamos a reorganizar-nos e a arrumar a casa. À espera de outra avalanche. (Risos)


Já que falou em tecidos, em Portugal, há produção dos tecidos  que utiliza ou têm de importar?


O meu avô sempre importou e os fornecedores com quem eu trabalho, hoje em dia, são os fornecedores que o meu avô trabalhava há quarenta anos atrás. As mesmas marcas de tecidos. Por isso, eu continuei a trabalhá-las. Como aqui o que me preocupa, na realidade, é a qualidade, eu sou obrigado a trabalhar com produtores internacionais que, indiscutivelmente, têm mais qualidade.


O nosso país é considerado por ter as melhores indústrias e empresas têxteis. Não deveria haver mais apostas neste sentido? Mais preocupações com este setor…


Eu acho que há. Mas o nosso país sempre foi bom a produzir para outros. Porque nós nunca conseguimos ter uma marca portuguesa forte. Uma marca de roupa forte portuguesa que esteja numa Bond Street ou numa Madison Avenue. Não está lá nenhuma loja portuguesa. O que nós vemos são marcas italianas, 80%. Algumas francesas como a Chanel, a Yves Saint Laurent, a Dior… E depois uma ou outra espanhola e japonesas. E pronto. Ou seja, nós sempre fomos bons a produzir para os outros. Nunca conseguimos impor uma marca de luxo portuguesa no mercado.


Então a moda em Portugal não está ao mesmo nível daquela que se faz no internacional?


Ela tem qualidade, o que falta são compradores. Porquê, na minha opinião? Porque, por exemplo, um consumidor liga muito à marca. Ou seja, ele prefere dar 500€ por uma camisa da Prada do que estar a dar 500€ por uma camisa que  diga Pedro Sebastião Almeida, por exemplo. E depois pensa também: “Não, isto é português” e nós temos a fama de sermos baratos. A malta ainda vai à procura, mesmo estrangeiros, do Portugal barato. E não é assim, não é assim… Nós também não temos capacidades para fazer… Um designer português não tem a capacidade para fazer mil peças porque não tem comprador.


Esta falta de presença deve-se à falta de cultura de moda? 


Não, não é por falta de cultura. As pessoas gostam de moda e têm conhecimento. Agora, não há marcas, não se vêem criadores nacionais por aí.


Se não é por falta de cultura de moda, porque ela está lá, é consequência da falta de apoios?

Quem fazia este trabalho era o Portugal Fashion. Porque o Portugal Fashion, vamos lá ver uma coisa, também levava a moda nacional ao estrangeiro. E recordo-me do Miguel Ferreira apresentar a coleção dele na Milão Fashion Week, o que é espetacular, é só a melhor semana de moda de homem do mundo. Milão sempre esteve interligado à moda masculina. Não sei como vai ser, mas nós precisamos de um empurrão para o mercado internacional.


E, por fim, vamos falar do Porto Fashion Week. A alfaiataria tem espaço nestes eventos?


Tem! Vou explicar o porquê. Não têm espaço para apresentar uma coleção  demoram algum tempo a serem contruídas, fazer vinte peças teria um custo astronómico e não faria muito sentido. Mas eu, pronto, fiz uma coisa muito bonita com o Portugal Fashion e já com a Moda Lisboa também, que foram mini-workshops. Ter tem, mas são assim pequenas coisas.


Mas, por outro lado, estar presente num evento destes, não pode ser intimidante? Dado que está rodeado por uma indústria de produção em massa.


Não, porque o alfaiate sabe bem o produto que tem e o que sabe fazer. Ou seja, ele será superior ao que está ali. Quando nós estamos bem e confortáveis com o nosso trabalho e sabemos do que somos capazes, não temos receio. Uma coisa é o que as pessoas dizem e pensam, outra coisa é o que nós pensamos e a certeza do produto que oferecemos. E do que sabemos fazer e do nosso conhecimento. Posso-lhe garantir que há aí centenas de estilistas que não sabem pegar numa agulha.


Isso até dá para virarmos ao contrário. É, se calhar, a produção de massas a tentar ter um lugar mais próximo ao cliente?


Hoje, nenhum designer quer mostrar produções em massa. Eles querem mostrar  na mesa, como eu estava ali. Estava a trabalhar, manualmente. Eu trabalho para alguns estrangeiros, que são autênticos nerds. Malta da banca, que só sabem estar todo o dia na frente do computador e percebem de números… Essas pessoas  apreciam o trabalho manual como ninguém. Porquê? Porque é algo que não sabem fazer e nunca fizeram. Eles chegam aqui ao atelier ou a Lisboa e, só o facto de verem a prova, eu a desmanchar, a riscar com o giz, a colocar os alfinetes… Tudo muito manual. Como eles não sabem fazer, eles adoram e apreciam. E, eu pronto, não estou a fingir. Estou ali a fazer o meu trabalho. (Risos) Estou a rasgar o fato todo para depois o fazer e preparar a próxima prova. Isso é a essência e o amor pela alfaiataria. Para mim. Ou seja, eles precisam de usar o fato e eu sou o artista que o faz.


Eles precisam de usar o fato e eu sou o artista que o faz.

Mais do que um alfaiate, é um artista?


Sem dúvida, eu acho isso.





Com João Jesus

Grande Reportagem

La lhéngua que ye l coraçon dua cultura 

por Lara Castro, Natalia Vásquez e Nádia Neto, em Miranda do Douro
janeiro 2024

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