50 anos depois do 25 de abril, a luta feminista continua viva
- Natalia Vásquez

- 10 de jan. de 2024
- 7 min de leitura
Atualizado: 17 de jan. de 2024
Nos anos 70, as mulheres da ditadura levantaram os cravos e as bandeiras de luta durante a revolução. Atualmente, contam as suas histórias e ajudam a manter viva a memória do fim da ditadura.

Ana Maria Sabino guarda talheres e pratos, na sua casa em Miranda do Douro, enquanto narra a sua vida. Desde nova, se casou e cuidou do marido e das duas filhas. Durante alguns anos da ditadura, morou em Moçambique. Quando se lembra daquela época, a sua voz torna-se melancólica. “Gosto muito de cá, mas Moçambique era bom. Lá, eu tirei a carta para andar para aqui e para ali. A chatear o marido, não é? Estava sempre com o carro.”
Anos depois da revolução, voltou para Portugal com o marido e as filhas. Hoje, Ana Maria tem 80 anos, é avó e diz que nunca teve um emprego.
“Quem trabalhava era o marido, eu não. Eu estava em casa, mais nada. Eu trabalhava só aqui. Em casa, punha as batatas e feijão, grão-de-bico, cebolas, cenouras, era eu que trabalha, fazia melhoras da máquina, fazia tudo.”, conta Ana Maria.
O papel de Ana Maria Sabino era o mesmo de muitas mulheres no Estado Novo: dedicação à casa, à família e ao marido. Ana Ferreira, professora de História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, explica, com maior detalhe, qual foi o papel da mulher na ditadura.
“Segundo a ideologia Salazarista e a ideologia do Estado Novo, o papel da mulher era ser mãe e ser esposa. A mulher devia ser aquela que ficava em casa, que cuidava da casa, dos fazeres domésticos, do marido, dos filhos, e o homem era aquele que ia trabalhar, ganhar o sustento da família e o chefe de família.”
No entanto, a professora esclarece que a mulher portuguesa fazia muito mais do que cuidar da casa:
“As mulheres do povo sempre trabalharam, apesar de esta ideologia do Estado Novo da mulher a tomar conta da casa. É claro que nas camadas populares, a mulher sempre teve de trabalhar. Ao longo da história isto sempre aconteceu, as mulheres sempre trabalharam como criadas, como lavadeiras, como amas de leite, como vendedoras, peixeiras. Sobretudo, a mulher que ficava em casa era uma mulher de classe média, da burguesia. Que o homem ganhava um salário suficiente para ela poder ficar em casa a tomar conta da casa. Mas era um papel, obviamente, totalmente subalterno, em que a mulher ficava no domínio do privado e o homem ocupava o espaço público. O homem era o chefe de família, o homem mandava na mulher e nos filhos.”
A mulher vivia na sombra da ditadura - e do homem. Durante o Estado Novo, as limitações para o sexo feminino não faltavam. Uma mulher não podia ter um negócio nem viajar para o estrangeiro sem autorização. Além disso, nenhuma mulher podia divorciar-se se estivesse casada pela igreja. As professoras e as enfermeiras tinham de pedir permissão para se casar. A magistratura e a diplomacia eram profissões proibidas. Nesse tempo, se uma mulher assinasse um contrato, o marido podia ir ao seu local de trabalho e demiti-la.
No entanto, nas cidades, na metade dos anos 70, a mudança começava a chegar. Idalina Rodrigues, agora com 72 anos, entre risos, lembra-se de quando era estudante de medicina, nos tempos da ditadura.
“Antes do 25 de abril, era uma jovem, como a idade o retrata. Portanto, estudante ainda. Estudante da faculdade de medicina em Lisboa. Participei em várias movimentações estudantis. Quer, sobretudo, contra a guerra colonial, manifestações de rua, ações dentro da faculdade e também contra o ensino que, na altura, era administrado nas faculdades.”
Idalina Rodrigues relembra que o rol feminino foi-se alterando ao longo da década. Cada vez mais, as mulheres clamavam por liberdade. Os tempos mudavam. A literatura era prova disso. Em 1972, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, conhecidas como as três Marias, publicaram um livro chamado “As Novas Cartas Portuguesas.” Ainda hoje, o exemplar é visto como um marco importante.
Teresa Martins é estudante de psicologia e tem 20 anos. Desde que entrou à faculdade, participou em marchas estudantis e feministas. Teresa não participou na revolução, mas já leu As Novas Cartas Portuguesas e estudou a sua história. Explica que o livro impulsionou a mudança feminista, mas que também causou muita controvérsia:
“O livro das três marias é um compilado de várias cartas, poemas e testemunhos que exploram a sexualidade e a liberdade das mulheres. Foi escrito por três mulheres e pelas experiências de vida delas. Na altura, depois da publicação do livro, o Marcelo Caetano, num programa de conversas que ele tinha, disse que essas três mulheres não eram dignas de ser portuguesas. Depois disso, começou todo um processo em tribunal, vieram feministas de Paris, dos EUA. Havia sempre feministas com tochas sentadas na embaixada portuguesa. Foi um processo longo em tribunal, só acabou depois do 25 de abril.”
Teresa, todavia, frisa na importância do livro: “Eu aconselho muito lê-lo, porque dá, de facto, para entender porque foi o que foi na altura. Penso que elas terem a coragem de ter feito isso e não terem desistido do foco delas e da luta delas foi de extrema admiração, é um exemplo a seguir. Na altura, elas precisavam de lutar, não só porque eram mulheres políticas, mas porque precisavam de mudar a situação na que estavam. Sem obras como essa, não tinha acontecido a revolução, porque o movimento do 25 de abril não foi só algo do corpo militar, foram também revindicações populares, uma mudança de mentalidades que precisou de todos estes diferentes ramos para acontecer.”
A professora de História Ana Ferreira também explica a importância por trás das Novas Cartas Portuguesas. “Podemos dizer que foi verdadeiramente o primeiro livro feminista português. Marcou o feminismo em Portugal, sobretudo o feminismo da segunda vaga. O livro é tão polémico porque denuncia a subalternidade da mulher e a violência sobre a mulher. Porque reivindica também o direito da mulher ao prazer, ao corpo e a sexualidade, o que era um escândalo no Estado Novo. Obviamente, o livro foi proibido e foi lhe posto um processo por pornografia e ofensa a moral.”
As Novas Cartas Portuguesas eram só o começo da revolução feminina. O 25 de abril marcou um ponto sem retorno, para todos os portugueses. Hoje, a revolução ainda é recordada por aqueles que a viveram.

Idalina Rodrigues estava no seu quarto alugado, em Lisboa, quando começou a ouvir a rádio e entendeu que algo grande estava a acontecer. O 25 de abril tinha começado, mas ela ainda não o sabia.
“Percebi que tinha acontecido um golpe, mas não sabia muito bem que golpe tinha sido. Entretanto, ouvi um grande barulho e vi na rua uma grande manifestação. Foi muito giro. Pronto, depois todos tivemos frente à PIDE, na Baixa, no Chiado. Participei em todas as manifestações que se deram pós 25 de abril. 1 de maio foi uma coisa inesquecível, era as ruas cheias de gente. Pessoas que vieram de fora e que eram presos políticos, outros que tinham sido libertados, toda a gente a abraçar-se, foi uma coisa mesmo inesquecível.
Eu posso dizer que, apesar de ter 72 anos e isso significa que já não tenho muitos anos de vida, eu não gostaria de viver numa outra época. Acho que aquela época foi tão rica e esse momento ninguém me o pode tirar. Eu lembro-me, por exemplo, que o meu companheiro estava fugido e que eu ia a um determinado sítio combinado, sempre a olhar para trás com medo a ser perseguida e ser eu que conduzia a PIDE até ele. E de repente, estar na rua, a gritar, correr, abraçar, dizer o que se pretendia, foi de facto maravilhoso.”
Idalina ainda consegue descrever, ao pormenor, a memória do 25 de abril. Ela também recorda como a Revolução dos Cravos foi sinónimo de força e liberdade para as mulheres.
“É nessa movimentação que nós começamos a ver as mulheres, que nós víamos sempre retraídas, a vir à rua. Começa, de facto, uma força viva e ativa na vida social. Também nelas houve um rasgar, digamos, como se tivessem umas amarras e, de repente, se cortassem e elas explodissem. Eu acho que, não ainda com as reivindicações específicas e próprias das mulheres, mas foi a sua participação social o que criou mulheres mais conscientes”.
Dois anos depois do 25 de abril, Idalina foi uma das fundadoras da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta). Em Lisboa, numa sala da associação, rodeada de livros, lembranças e fotos, Idalina recorda os começos da UMAR.
“Portanto, a UMAR começa como União das Mulheres Fascistas e Revolucionarias. Isso quer dizer que ela, de início, não tinha o seu âmbito perfeitamente definido, mas tinha uma coisa muito importante, que era a aglutinação dessa força das mulheres que tiveram uma participação. E esse foi o princípio para se caminhar, na definição do que eram as reivindicações das mulheres e o que seriam as suas bandeiras.”
Idalina Rodrigues foi um dos rostos da luta pelos direitos das mulheres. As reivindicações femininas ainda continuam a dar que falar. A professora de História, Ana Ferreira, destaca que a revolução não acabou: “No entanto, verdadeiramente, nós podemos dizer que essa revolução para as mulheres ainda vai demorar a cumprir-se e ainda hoje, se calhar, não esta totalmente cumprida porque não há total igualdade a todos os níveis.”
Um exemplo da luta, que não morre, é a estudante Teresa Martins. Ela acredita que ainda há um longo caminho por percorrer:
“Continua a ser uma luta muito social acima de tudo. As pessoas pensam que se a legislação e a constituição mudam, as coisas deixam de ser sistemáticas. O machismo é sistemático, está enraizado na nossa sociedade e ele precisa de ser desconstruído. Precisamos, constantemente, de lutar contra ele e contra os efeitos que ele provoca. Não é uma coisa que teve um ponto final, estamos muito longe de um ponto final.”
Idalina Rodrigues, fundadora da UMAR, também deseja um futuro melhor para todas:
“A esperança que eu tenho é de um mundo melhor. Onde seja possível que a mulher participe nos lugares de decisão, de tribunais, nos governos, nas assembleias. Poderá não ser para mim, mas há de ser para a minha neta ou bisneta, ou seja, lá o que for.”
As bandeiras e os punhos feministas ficarão no ar, enquanto aguardam pela verdadeira igualdade, agora e no futuro.
Saiba mais sobre a década de 70, no ACTUAL.

















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